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Editorial – Militares no governo são uma sequência de crimes contra o Brasil

‘Esta deplorável situação é da conveniência da casa-grande, e mantém intocadas a medievalidade do País’, escreve Mino Carta

O presidente Jair Bolsonaro, durante solenidade do Exército em 2019. Foto: Marcos Corrêa/PR
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Não sei se é triste ou melancólico, ou mesmo desesperador, constatar que neste momento Mianmar lembra o Brasil. A legítima líder política e o presidente estão presos e as Forças Armadas tomam conta do país depois de um golpe que de certa forma é igual a tantos outros que marcaram a nossa história.

Graves acusações alvejam a senhora Aung San Suu Kyi e o presidente Win Myint e nada impede que a inspiração venha do golpe que, no Brasil, derrubou Dilma Rousseff. Naquele canto do mundo, o golpe militar faz parte do calendário comum. Podem-se programar eventos, e até lances normais da vida, antes ou depois de um golpe.

A república brasileira nasce de um golpe militar com a notável desfaçatez de ser apresentado como feito heroico. Aposentado à força o imperador D. Pedro II, dois generais marcam o início do novo sistema de governo e as placas indicativas de praças, ruas, viadutos, túneis, pontes, avenidas, e mesmo rodovias, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, heróis da pátria.

Vale acrescentar que Floriano, fanático de golpes, para tomar-lhe o lugar, aplicou outro no próprio Deodoro. Uma foto que ilustra estas páginas mostra Getúlio Vargas de farda, cercado por seus companheiros da chamada Revolução de 30, autor de um golpe que desaguou numa ditadura amparada pelo poder onipotente das Forças Armadas.

Um general arcava com o papel de condestável, Góis Monteiro, qualificado para assumir a condição de bicho-papão dos pesadelos infantis. Mas, de verdade, o Brasil já estava preparado para o comportamento de um verdadeiro exército de ocupação. Já era tradição registrar o poder intimidatório das Forças Armadas, ao passar por fenômenos de profunda repercussão política como o enfrentamento dos 18 do Forte de Copacabana ou o bombardeio de bairros centrais de São Paulo, como Mooca e Brás, por canhões postados no Cambuci.

Do tenentismo nos anos 20 à tentativa frustrada de Aragarças durante o governo de Juscelino Kubitschek, a história do Brasil foi vincada por uma presença militar que não tem similares nos países praticantes do Estado Democrático de Direito.

O golpe de 1964, ao derrubar o governo legítimo de João Goulart, completa um enredo interminável e desnuda a característica de um país distante da civilização. Verifica-se então que a casa-grande ainda mantém seus privilégios em relação a uma enorme senzala incapaz de reação. Contam os graúdos com candentes editoriais dos seus jornalões, a definir que o caminho do poder apoia-se na força. Quanto à paz, recomenda-se a dos cemitérios.

Experimenta-se um singular equívoco: as Forças Armadas brasileiras que se dizem esteio do patriotismo aceitam passivamente, quando não o solicitam, o apoio de Tio Sam, disposto a livrar-se da cartola para proteger a cabeça com o capacete dos Marines. A CIA, infiltrada, aliás, em toda a América Latina, influencia decisivamente os desenvolvimentos políticos e controla a situação, a começar pelo Brasil. É o que talvez explique a diferença entre as ditaduras da América espanhola e a portuguesa. E é por isso que ainda estamos a discutir o número dos resistentes no Brasil no confronto com Argentina, Chile, Uruguai e outros, e também o real balanço dos assassinados e dos desaparecidos.

É por isso que, no Brasil, falar em Comissão da Verdade é gesto de rebeldia contra a realidade histórica, segundo os nossos fardados.

Se na Argentina 30 mil foram as vítimas da repressão e incontáveis milhares no Chile e até no pequeno Uruguai, é porque no Brasil bastava eliminar 300 e mais alguns. A diferença está na qualidade dos povos. Em relação à prepotência e ao desmando dos senhores, os brasileiros não foram preparados para a resistência, enquanto a casa-grande logo se aproveita da vocação golpista das Forças Armadas.

Nestes dias vai às livrarias uma longa entrevista do general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, tragicamente reveladora do despotismo cometido à sombra das armas, de sorte a interferir em profundidade nos destinos do País, como se dá em 2018 com as pressões cometidas contra o STF súcubo para impedir o habeas corpus de Lula, ou contra Dilma Rousseff, sem contar as bandalheiras que ornam a relação com o governo Bolsonaro. Aos militares tudo é permitido, inclusive a presença no comando de vários ministérios, a exemplo da Saúde, em que avulta, sobretudo, a sua incompetência.

A presença fardada no atual governo é o arremate de uma sequência de crimes cometidos contra o Brasil e os brasileiros. E esta deplorável situação é da conveniência da casa-grande, e mantém intocadas a medievalidade do País e a impossibilidade de uma redenção.

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