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Manual reacionário

Os pontos que unem Trump, Bolsonaro, Milei e os outsiders europeus

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Fortalecida, a Internacional Extremista decidiu trocar “experiências” e adotar táticas comuns para angariar votos – Imagem: Vox Espanha
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A atuação de Donald Trump potencializa o campo de ação de líderes como Jair Bolsonaro e Javier Milei, na América do Sul, e Santiago Abascal e André Ventura, na Europa. A confiança no discurso desses líderes rende a eles muitos votos e ilustra a heterogeneidade das extremas-direitas. Isso não significa que o eleitorado se radicalizou, não são milhões de eleitores radicais, mas muitos votos de protesto. A consolidação ideológica da extrema-direita fez com que o limite com a direita moderada se torne difícil de estabelecer.

O português Ventura e o espanhol Abascal são dissidentes da direita moderada em seus países e criaram seus partidos, o Chega e o Vox, respectivamente. Na América do Sul, Milei seguiu o mesmo caminho, fundou o Partido Libertário e estabeleceu a coalização “La Libertad Avanza”. Já Bolsonaro e Trump capturaram legendas existentes, o PL e o Partido Republicano.

Com trajetórias distintas de reconhecimento, essas lideranças atingiram as massas e ganharam mais notoriedade a partir da exposição em programas de televisão, com exceção de Abascal. Mesmo com a ascensão das redes sociais, a tevê ainda tem o poder de dar ampla visibilidade. O jeito duro dos jornalistas de cobrar posições populistas e autoritárias dessas figuras políticas leva muitos a simpatizar com os políticos “oprimidos” e atacados pela “elite prepotente”.

É possível identificar o populismo autoritário quando um discurso é dirigido a uma parcela da população, criando uma fronteira contra uma suposta elite corrupta. Nessa construção há o cidadão de bem, que representa o “povo”, de um lado e, no outro flanco, os outros, os “impuros”, que mantêm o sistema e devem ser aniquilados por representarem o “mal”.

O conflito permanente está presente no discurso da extrema-direita, sobretudo na disputa de valores morais e de práticas culturais que apelam ao medo diante das transformações sociais contemporâneas, reforçando discursos que associam tais mudanças à decadência dos costumes e à perda de identidade nacional. É essencial a criminalização dos inimigos, o controle de fronteiras e a regulação dos corpos.

Com o objetivo de fortalecer a ideia de que as esquerdas comandam o “sistema”, o combate à corrupção é estratégico. Os inimigos corruptos são apresentados como uma elite que saqueia o país­ pela manutenção dos seus privilégios e o tema divide ainda mais o “nós” contra “eles” que dá concretude ideológica e a certeza ao eleitor da extrema-direita de que está “do lado certo da história”, ao lado dos cidadãos de bem.

O confronto permanente é um modo de ação política

Qualquer um que discorde ou faça oposição ao projeto da extrema-direita é atacado, como demonstram Bolsonaro, Trump e Milei numa “liturgia da transgressão” que desafia e rompe o estilo político bem-comportado. Humilhar poderosos gera identificação com o cidadão de bem que sente a proximidade da liderança corajosa que combateu a elite dominante.

Baseado em quatro indicadores propostos pelos cientistas políticos ­Steve Levitsky e Daniel Ziblatt, que buscam identificar o comportamento autoritário, analisamos Bolsonaro, Trump, ­Milei, Ventura e Abascal.

Rejeição às regras democráticas

Desqualificar o sistema eleitoral de seus países é habitual em Trump, Bolsonaro e Milei, a fim de gerar instabilidade. Subverter a Constituição por dentro faz parte do projeto. Bolsonaro passou quatro anos afirmando que “joga dentro das quatro linhas da Constituição”, enquanto elaborava um golpe de Estado com verniz de legalidade. Trump violou a Constituição norte-americana em alguns momentos e tentou anular a eleição presidencial de 2020, justificando fraude a favor dos democratas.

Negação da legitimidade dos oponentes

Milei, Trump, Bolsonaro, Ventura e Abascal são políticos que se apresentam contra o sistema. O populismo e o nacionalismo característico neles negam a legitimidade dos adversários, ­mostrando-os como subversivos que constituem uma ameaça à pátria. Nesse sentido, a criminalização de Lula e do PT, Joe Biden, Pedro Sánchez e do kirchnerismo são fortes discursos no populismo autoritário.

Tolerância ou encorajamento à violência

Nota-se que Milei, Bolsonaro e Trump têm tolerância à violência e chegam a encorajá-la, sem expressá-la diretamente. Na Argentina, Milei recusou-se a condenar o atentado a tiros contra a vida da vice-presidente Cristina Kirchner. Essas lideranças estimularam os ataques às instituições e endossaram a violência, bem como elogiaram agressões do passado, como a ditadura civil-militar no Brasil e na Argentina. Abascal, por sua vez, propõe um revisionismo histórico em relação ao passado autoritário do período franquista.

Disposição para restringir as liberdades civis

Essas lideranças demonstram vocação para restringir as liberdades, principalmente da mídia. Nesse sentido, Trump e Milei juntam-se a Bolsonaro no tratamento de ofensas e ironias à classe jornalística, funcionando como autorização para sua base fiel praticar violência física e simbólica. Trump, Milei, Bolsonaro e Ventura acreditam que seus partidos são perseguidos pelos meios de comunicação.

Os indicadores revelam que essas lideranças oferecem riscos à democracia. Trump, Milei e Bolsonaro se enquadram em uma extrema-direita ultrarradical, pois podem valer-se de insurreições violentas. Abascal e Ventura são classificados em uma direita radical que aceita e reforma a democracia.

O ponto central da subversão constitucional de Trump e Bolsonaro é a defesa populista de que são favoráveis à democracia, quando, na verdade, visam esvaziá-la de sentido para que seus projetos sejam chamados de democráticos. Não há defesa da implementação de uma ditadura no discurso e um golpe de Estado viria acompanhado da negação da ruptura democrática e a afirmação de que a verdadeira democracia teria começado. Compreender essas lideranças é fundamental para obstruir o populismo autoritário e ter mais clar


*Vera Chaia é cientista política; Fabricio Amorim é cientista político; Arthur Spada é advogado; Carolina Guerra é jornalista. Todos são pesquisadores do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (Neamp) da PUC-SP.

Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Manual reacionário’

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