Artigo

José Socrates: A diplomacia brasileira é uma tragédia

‘Servilismo a Washington e descaso ambiental tornaram país um parceiro econômico e político inconfiável’, escreve o autor

O chanceler Ernesto Araújo. Foto: Evaristo Sá/AFP Araújo, vamos acabar com tudo isso aí, talkey? (Foto: Evaristo Sá/AFP)
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No Brasil é difícil separar, mesmo que apenas para simples efeitos de análise, a política externa da política interna. Na verdade, os maiores problemas de imagem brasileira no palco internacional resultam diretamente da sua política doméstica.

No meu ponto de vista, o principal problema tem a ver com a sensação internacional de que o País está num plano inclinado perigoso de violência política e de desrespeito pelas regras democráticas.

O processo degenerativo começou com o golpe parlamentar e o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Depois veio a condenação de Lula por fatos indeterminados. Em seguida, a sua prisão em desrespeito à Constituição e num processo judicial com clara motivação política.

Depois veio ainda a inacreditável nomeação de Sérgio Moro como ministro da Justiça, confirmando as piores suspeitas acerca da sua parcialidade enquanto juiz.

Depois veio o descumprimento do direito internacional quando o Estado brasileiro se recusou a acatar a determinação da ONU para que Lula fosse candidato.

Depois veio o escândalo da Vaza Jato, mostrando uma organização judicial corrompida pelo interesse político.

Comecemos por aqui: o primeiro problema internacional do Brasil é a credibilidade da sua justiça e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático.

O mais sério desafio da diplomacia brasileira é convencer o mundo de que o Estado brasileiro não prende adversários políticos, que a lei é cumprida nos seus tribunais, que a tortura não regressará, que a polícia e os militares não intimidarão a política, enfim, que o Brasil continuará a pertencer à comunidade de democracias cuja legitimidade se funda no valor primordial da liberdade individual. Honestamente, não me parece tarefa fácil.

O segundo problema da política externa brasileira diz respeito à sua política ambiental e em particular à Amazônia. O evidente retrocesso está a fazer o Brasil pagar elevado preço no plano internacional e, em particular, na Europa.

Entendamo-nos bem, o acordo de Paris e o combate às alterações climáticas constituem hoje uma questão estratégica para a União Europeia. Na verdade, a política ambiental é o que resta da política externa europeia, depois do desaire da crise das dívidas soberanas e da vergonha internacional com os refugiados. Essa é a nova causa europeia e é com base nela que o bloco político europeu procura restaurar a sua imagem no mundo. Portanto, e de forma simples – o assunto é para levar a sério.

O crescimento da área ardida na Amazônia e a retórica do governo brasileiro contra as leis e regras ambientais tornam o Brasil um País pouco confiável e um parceiro econômico que gera as maiores desconfianças. É esta situação que explica que o acordo UE-Mercosul, tão importante politicamente e tão arduamente negociado entre as duas partes, esteja agora ameaçado na sua entrada em vigor.

E pior, a França e a Alemanha têm liderado as reservas à sua assinatura. Lembram-se do episódio de humilhação diplomática do ministro dos Negócios Estrangeiros francês? Lembram-se do presidente brasileiro cancelar a reunião com ele alegando “problemas de agenda” ao mesmo tempo que, provocatoriamente, exibia um pequeno filme em que cortava o cabelo? Lembram-se de o ministro dizer que tinha recebido a notícia com a “calma dos veteranos”? Bom, agora lembrem-se também que a França é uma potência nuclear, que integra o Conselho de Segurança das Nações Unidas e não costuma esquecer facilmente estas humilhações.

Por outro lado, e pondo de lado este infeliz incidente que apenas vem confirmar como a brutalidade e a má educação contaminaram a política externa, talvez seja importante que o Itamaraty mantenha bem presente no seu espírito que os partidos verdes da Europa não têm apenas muita influência nas respetivas opiniões públicas, como têm mais poder político no Parlamento Europeu que os ruralistas no Congresso Nacional.

Não vale a pena disfarçar, a questão da Amazônia representa hoje um grave embaraço econômico e político para o Brasil. Na verdade, o que mais impressiona é a súbita reviravolta. Antes a Amazônia constituía um orgulhoso ativo da diplomacia brasileira, hoje representa a mais séria ameaça à sua imagem internacional. Muito triste.

O terceiro problema é a relação com os Estados Unidos. Se é possível descortinar alguma racionalidade nesta política externa é a ideia pueril de que o alinhamento incondicional com Washington resolverá todos os problemas. Mais perto da sede imperial, maior proteção, maior influência no mundo. Esta política é primária, arriscada, ignorante e profundamente irresponsável.

Houve momentos anteriores em que ficou provado que pode haver uma política de amizade com os Estados Unidos sem seguidismos cegos (como por exemplo na guerra do Iraque). Por outro lado, e ao contrário de períodos anteriores em que a política externa tinha consenso bipartidário, o alinhamento com a retórica e a política de Donald Trump não é a mesma coisa que se alinhar com os Estados Unidos. Ao contrário – nalgumas questões importantes como o clima, o Oriente Médio e a ameaça belicista –, isso significa colocar-se contra metade dos norte-americanos.

Para pôr a questão de forma mais clara, o debate político nos EUA sobre a política externa é intenso, radical e tem a ver com a sua própria identidade. É um debate entre o mainstream e o chamado subterranean stream. Entre estes últimos que acham que a missão norte-americana é defender a civilização branca, anglo-saxônica e protestante e os que acham que a política externa deve construir e liderar uma ordem global assente nos princípios do iluminismo da sua declaração de independência, o que significa acreditar em direitos individuais universais e num mínimo de visão cosmopolita baseada no direito internacional e na prioridade à diplomacia.

O Brasil parece deixar de aspirar à liderança do espaço latino-americano, construída com base numa ordem política de boa vizinhança, de cooperação econômica e de paz, para se transformar na testa de ponte dos interesses, não da América, mas da extrema-direita dos EUA nesta parte do continente.

O que é espantoso é que tudo isto se tenha passado em tão pouco tempo e que, subitamente, os adultos pareçam desaparecidos das salas do Itamaraty. Com afetuosa lembrança de tempos melhores, a diplomacia brasileira é uma tragédia.

*Foi primeiro-ministro de Portugal.

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