Artigo

Jean Wyllys: Nada parece mais absurdo do que o Brasil

Em texto para CartaCapital, ex-deputado escreve sobre o teatro do absurdo: ‘Trump caiu, mas outros bufões continuam no poder’

O presidente da República, Jair Bolsonaro. Foto: Isac Nóbrega/PR
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Por Jean Wyllys*

Absurdo! Não há palavra melhor para descrever a situação que o mundo está vivendo mais notadamente desde de 2016 – o ano do referendo que decidiu pela saída do Reino Unido da Europa (processo que ficou popularmente conhecido como Brexit) e ano da eleição de Donald Trump como presidente dos EUA – e que parece ter alcançado seu ponto culminante este ano, com a revelação de que estávamos sob uma pandemia de um novo coronavírus pelo menos desde outubro de 2019.

Ainda impactados pela ascensão de líderes e partidos de extrema-direita por meio da desinformação (leia-se, da mentira) planejada e dirigida na internet e especialmente nas mídias sociais, a gente se viu obrigada a um lockdown para conter a propagação da doença (a Covid-19) que praticamente parou o planeta. Hospitais superlotados e pessoas confinadas em casa e aterrorizadas sob o noticiário dos óbitos. Nas ruas e praças praticamente desertas – porque até os sem-teto se recolheram sob marquises, pontes e viadutos num primeiro momento – os que estavam obrigados a sair por trabalharem em serviços essenciais usavam máscaras de proteção. Tudo parecia absurdo; e realmente era. Ou melhor, é!

Ao contrário do que pode sugerir a derrota de Trump em seu esforço para se reeleger presidente dos EUA este ano e o anúncio de vacinas mais ou menos eficazes contra a Covid-19, o absurdo ainda está longe de acabar. No melhor dos prognósticos, pode ser que a curva que lhe descreve graficamente comece a descer nos próximos anos se não se tornar uma contante. E digo “absurdo” não apenas no sentido que lhe atribui o senso comum – aquilo que é contrário à razão – mas sobretudo naquele sentido que a palavra adquire quando caracteriza um certo tipo de ficção teatral que emergiu nos anos 1940, e que tem em Eugène Ionesco, autor de O rinoceronte, uma de suas maiores expressões. A cena contemporânea do mundo é um teatro do absurdo.

O absurdo segue porque Trump caiu, mas Putin, o presidente da Rússia, não. Tampouco os outros bufões e trapaceiros ignorantes mas gananciosos espertos (também chamados de “populistas”) que ascenderam politicamente e/ou triunfaram eleitoralmente nos rastro de ambos – Putin e Trump – e com similar uso de mentiras, teorias conspiratórias e fake news em suas propagandas políticas, contando a cumplicidade nunca admitida dos CEOs de plataformas de comunicação e (de)informação – como Facebook, Twitter, Instagram, Amazon, Google e etc. – na obtenção de dados dos usuários para fins de manipulação; e contando, claro, com o velho e conhecido cinismo oportunista dos neoliberais proprietários das mídias de massa (canais de rádios e televisão) e seus títeres no que o cientista político Wilson Gomes chama de “jornalismo de referência”.

O absurdo segue porque, contra todas as boas expectativas geradas pelo horror da pandemia e do confinamento social, a Covid não freou o neoliberalismo econômico que a produziu, muito pelo contrário: houve um aumento significativo na concentração de renda (os ricos se tornaram mais ricos desde então) e, consequentemente, um aumento do desemprego e da miséria. Contrariando as teimosas esperança e crença na empatia alheia que norteiam políticos, cientistas, intelectuais e artistas humanistas, amiúde de esquerda, diferentes governos se aproveitaram da pandemia para ampliar a vigilância do Estado sobre seus cidadãos, sob a justificativa de que se está monitorando a infecção pelo novo coronavírus; reprimir violentamente manifestações de rua em favor de mais direitos (casos, por exemplo, do Black Live Matters, nos EUA, e do movimento no Chile para derrubar o dispositivo neoliberal da Constituição do ditador Pinochet); e para impor, ao conjunto da população, normas de condutas sociais pautadas no modelo patriarcal e heternormativo de família, criminalizando e estigmatizando ainda mais aqueles que, não se encaixando nestas normas, tentam burlá-las de alguma forma.

O absurdo segue porque, em que pesem a vitória do movimento anti-neoliberalismo no Chile; a derrubada do golpe na Bolívia (com a vitória democrática de Luís Arce, candidato de Evo Morales) e a eleição de Alberto Fernández e Christina Kirchner na Argentina, os recursos naturais da América Latina seguem sendo privatizados por corporações estrangeiras (americanas principalmente), graças principalmente ao eixo formado por Colômbia e Brasil, países governados por dois daqueles populistas ignorantes mas gananciosos: Iván Duque e Jair Bolsonaro. E nada nos garante que Joe Biden e Kamala Harris – eleitos presidente e vice-presidenta dos EUA numa disputa acirrada em que os movimentos de minorias chamados pejorativamente “identitários” contribuíram bastante para a vitória da chapa – mudarão a política externa imperialista e neocolonialista em relação à América Latina, ainda que essa política esteja oficialmente a serviço de salvar a Amazônia e reduzir o aquecimento global. E o governo populista e ditatorial de Nicolás Maduro na Venezuela (o lixo jogado para debaixo do tapete das esquerdas latinoamericanas) segue sendo uma incógnita nessa geopolítica.

E, antes que eu entre no absurdo dentre os absurdos que é o Brasil pós-golpe de 2016 (o impeachment fraudulento contra a presidenta Dilma Rousseff), é importante ressaltar que o governo da China – vítima do racismo que lhe atribui a responsabilidade pela pandemia de Covid-19 – segue sua guerra comercial e provando ao mundo que o capitalismo neoliberal não precisa da democracia; e os governos do Iran, Arábia Saudita e Israel seguem, assim como algumas organizações palestinas, tirando proveito político do terrorismo e do fanatismo religioso, enquanto milhares de imigrantes negros de países africanos em guerras civis e crises econômicas severas decorrentes destas correm para os países da Europa Ocidental, onde partidos e líderes de extrema-direita e neonazistas na Itália, Espanha, Alemanha e até Portugal, por exemplo, usam-nos para obter lucros políticos, recorrendo à desinformação dirigida, fake news e difamação contra essas vítimas do colonialismo europeu.

Tudo isso é absurdo ainda mais sob a pandemia de uma doença ainda misteriosa, em relação à qual o que se esperava dos diferentes atores políticos do mundo era uma cooperação internacional (ou, no mínimo, uma trégua em seus jogos vorazes).

Mas nada parece mais absurdo do que o Brasil. Para chegarmos ao ato – no sentido teatral do termo – em que um fascista apologista da tortura (portanto, mais que um populista ignorante e ganancioso cuja família tem relações com mafiosos) se elegeu e montou um governo irrefutavelmente genocida, passamos por várias cenas. Esse teatro de absurdos começou com um impeachment da presidenta Dilma Rousseff sem crime de responsabilidade. Uma maioria de parlamentares ricos e/ou herdeiros de poderosas oligarquias políticas ou representantes de máfias paramilitares e neopentecostais, comprovadamente corruptos quase todos e quase todos brancos e heteros conseguiram impedir o segundo governo da presidenta Dilma porque esta não estava implementando as políticas neoliberais ao gosto dos grandes empresários locais e estrangeiros.

Como cenário dessas cenas, um país em convulsão e polarizado pela desinformação perpetrada pelo “jornalismo de referência”, em especial o das Organizações Globo – convertido a essa altura em propaganda política para difamar Dilma Rousseff e seu partido, o PT (e, por extensão, todas as esquerdas, embora pouquíssimas pessoas de esquerda além de mim percebessem e dissessem isto; não por acaso, a violência política das fake news e das ameaças de morte pesaram mais duramente sobre mim) e, assim, “justificar” o impeachment aos olhos de um contigente tão ignorante politicamente quanto manipulado pela desinformação programada.

Antes das insultos e das mentiras descaradas de Bolsonaro e de membros de seu governo em relação à Covid-19 e aos crimes ambientais nas praias do Nordeste, no Pantanal e na Amazônia – mentiras que tiveram a forma de pronunciamentos oficiais em transmissões televisivas e em Live nas mídias sociais, mas sobretudo a forma virulenta das fake news e teorias conspiratórias disseminadas pelo “gabinete do ódio”, produzindo milhares de cadáveres na prática -, antes deste horror, o absurdo teve a forma do MBL, Vem pra Rua, Na Rua, Revoltados Online, Rio de Nojeira e outras organizações criminosas de extrema-direita especializadas em difamação nas redes sociais digitais, e cujos líderes contaram com o apoio material da FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), de parlamentares e de grandes empresas de comunicação apesar de seus discursos inegavelmente mentirosos e violentos. Alguns deles foram inclusive contratados como colunistas e comentaristas em jornais e rádios de grande alcance.

Antes do secretário de Cultura de Bolsonaro exibir publicamente um vídeo pastiche da propaganda nazista antissemita, para escândalo dos judeus ricos brasileiros que, todavia, calaram-se diante do discurso racista do então candidato Bolsonaro em relação aos quilombolas, o Santander – o Santander! – cancelou uma exposição de artes plásticas por pressão desses mentirosos, que acusavam prestigiados artistas de “pedofilia”, sob o silêncio sorridente dos grandes telejornais, que não acusavam abertamente o assédio porque este parte do movimento antipetista.

O absurdo segue porque, no mundo reconfigurado pela internet, os neoliberais de direita ou de extrema-direita (na prática, eles sempre se misturam porque os primeiros instrumentalizam os segundos para fazerem o trabalho sujo, já que a realeza sempre terceiriza o trabalho sujo de meter a mão na merda) se apropriaram das novas tecnologias da mentira e da propaganda, e não têm mais escrúpulos em usá-las principalmente quando contam com o “jornalismo de referência” para encobri-las.

Manuela D’Avila, candidata do PC do B em Porto Alegre; Marília Arraes, candidata do PT em Recife; e Guilherme Boulos, candidato do PSOL em São Paulo, foram massacrados por fake news perpetradas por seus adversários ao custo de muito dinheiro, e que tinham, por objetivo, manter os candidatos ocupados mais em desmentí-las do que em apresentar seus programas de governo em seus perfis nas mídias sociais. Tudo isso com a cumplicidade mal-disfarçada do “jornalismo de referência”.

A prova do que estou argumentando é o resultado das eleições municipais deste ano: venceram os golpistas (e aqui não me refiro só aos parlamentares, claro) que instrumentalizaram a extrema-direita para derrubar a presidenta Dilma em 2016 e, dois anos depois, vencer as eleições gerais (para tanto, nesse intervalo de tempo, os golpistas precisaram transformar um juiz de primeira instância e um procurador medíocres e corruptos em “heróis do combate à corrupção” e entubar, como candidato, um fascista desqualificado com filho ligado a organizações mais claramente mafiosas, já que lhes faltava um candidato populista com carisma).

E o que coroa o absurdo desse resultado é que ele contou com a colaboração das esquerdas, às quais não restavam outra alternativa, já que os golpistas neoliberais as colocaram na posição de terem de escolher entre o extermínio, sob a forma da doença ou do assassinato, e a escravidão (temporária, mas não sabemos quanto tempo esta durará).

O absurdo tem ainda a forma do comportamento egoísta, fratricida e nada inteligente das esquerdas colocadas nessa pelos golpistas. Onde deveriam brotar solidariedade e cooperação, cresce os gérmenes do ódio e dos linchamentos entre seus membros. O feio rinoceronte que aparece, do nada, nas ruas de uma cidadezinha e, a princípio, polariza sua população num jogo de acusações mútuas e atos deploráveis deixa de ser um problema ou o problema quando se descobre que todos os habitantes da cidade estão infectados e se transformando em rinocerontes. Faço aqui referência mais clara à peça de Eugène Ionesco que citei acima, que não poderia ser mais ilustrativa das epidemias que nos ameaçam, biológicas e/ou políticas.

Há alguma saída nesse teatro do absurdo, mesmo que este não seja seu ato final? Sempre há alguma saída!

Na peça de Ionesco, apenas uma pessoa não se transforma em rinoceronte: um homem sensível, racional e com empatia. Para não acusarem a Ionesco nem a mim de “machista”, eu posso lembrar que em Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, a única pessoa não infectada pela cegueira branca é uma mulher.

As campanhas de Boulos e de Manuela D’Ávila apontaram o caminho para um desfecho agradável desse teatro do absurdo no futuro: solidariedade, união, diálogo, criatividade e trabalho de base entre os dirigentes e militantes dos partidos de esquerda e representantes e ativistas dos movimentos de minorias, mas também a coragem de apontar aqueles, dentre estes, que já viraram rinocerontes, e os isolar antes que de que infectem os demais.

* Jean Wyllys é jornalista, escritor e doutorando em Ciências Políticas na Universidade de Barcelona.

Uma versão reduzida deste texto foi publicada na edição n.º1138 de CartaCapital, de 30 de dezembro de 2020

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