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I’m feeling good

Não foi apenas Trump o derrotado, mas o internacionalismo xenófobo e antidemocrático

Americanos comemoram derrota de Trump nas eleições (Foto: JOSH EDELSON / AFP)
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Agora que o nevoeiro levantou, vemos melhor. Joe Biden venceu com o maior número de votos da história. Venceu com uma diferença de mais de quatro milhões para o seu adversário. Virou os estados de Michigan, Wyoming, Pensilvânia, Geórgia, Arizona e Nevada. Os democratas conservam a maioria no Congresso e podem ganhar ainda o Senados que fica dependente da segunda volta na Geórgia ). Afinal, contados todos os votos, é agora visível uma onda azul no mapa eleitoral norte americano.

Cinco dias depois, o mais impressionante foi a forma como o mundo seguiu a evolução destas eleições. Aqui na Europa, que está a viver os seus piores dias da pandemia, televisões não falavam de outra coisa. Julgo que, pelo que pude acompanhar, o mesmo aconteceu aí no Brasil. De repente, tivemos um curso acelerado de geografia eleitoral americana. A diferença entre o eleitorado das duas Costas e o eleitorado do Midwest, o nome dos swing states, o nome dos estados da ferrugem que mudaram a eleição, a importância histórica da cidade de Filadélfia, local onde foi escrita a declaração de independência e que marcou também o momento crucial desta vitória eleitoral. Eis a força de atração americana.

Este fascínio com a eleição americana, com a devida licença aos que pensam e sentem de outra forma, nada tem de fútil ou de mero espetáculo de suspense (que também houve). Na verdade, os cidadãos europeus, tal como os cidadãos da América Latina, sabiam bem que tudo aquilo tem a ver conosco e que tudo aquilo acabará por nos bater á porta. É o que acontece quando se realizam eleições decisivas num País que tem mais de oitocentas bases militares no estrangeiro, um milhão de homens em armas, esquadras com porta aviões em todos os oceanos, e que é, ainda, a maior economia do mundo e o País mais influente nas principais instituições internacionais.

Um historiador uma vez disse que os ingleses construíram um império “sem se darem conta”. Os Estados Unidos também construíram um império, embora em estado continuo de negação. Mas ninguém é ingênuo. Todos sabíamos que esta eleição decidiria como essa força e esse poder iriam ser usados. Foi por razões compreensíveis que todo o mundo esteve atento.

Sim, bem sei, o espetáculo não foi bonito. Parecia que tudo se passava num País que estava a fazer eleições pela primeira vez. A pandemia, os votos pelo correio e a garantia de integridade eleitoral, não justificam inteiramente o lamentável espetáculo de arrastamento na contagem dos votos. No entanto, sejamos justos – o que de mais importante fica destas eleições é a extraordinária mobilização popular. Nunca tantos cidadãos tinham votado. Não, não é a polarização de que tantos falam, o que fica destas eleições. Todas as eleições, seja nos Estados Unidos seja no Brasil, são polarizadoras por natureza, dado o caráter bipartidário do sistema. O que fica é a consciência cívica dos americanos da importância do voto e a invulgar participação eleitoral. Isso sim, é o que fica. E fica também o espetáculo grotesco de quem não aceita perder e de quem acha que só os seus votos devem ser contados.

O ressentimento que fica no lado que perdeu terá que ser resolvido pelo Partido Republicano que aprendeu uma lição nestas eleições – 0 radicalismo, os apelos à violência contra os adversários e a negação das evidências científicas podem ter apoiantes, mas têm sempre um triste desfecho. O epitáfio foi escrito pelo jornalista Anderson Cooper quando da triste conferencia de imprensa do Presidente – parece uma tartaruga balofa virada de costas esperneando ao sol. Talvez “balofa” esteja a mais.

Sejamos claros. Todos, os que votaram e os que assistiam, tinham absoluta consciência que estava em jogo a própria ideia de democracia. Todos os que, no resto do mundo, ficaram colados as televisões, sabiam que estas eleições teriam consequências na vida democrática dos seus próprios países. Bom, eis o resultado – não foi apenas Trump o derrotado, mas o internacionalismo xenófobo e antidemocrático. A rede de extrema direita no mundo, que não tinha parado de crescer nos últimos anos, foi travada. O que estava em causa nestas eleições, todos o compreendemos, eram os valores da tolerância, da inclusão, do diálogo, dos direitos individuais – da liberdade, numa palavra. A democracia venceu estas eleições. E todos pudemos comemorar o resultado.

Do ponto de vista estratégico estas eleições foram determinantes para a Europa, mas por maioria de razões foram-no também para toda a América Latina. A chamada doutrina Monroe, que começou em dezembro de 1823 por ser uma declaração contra o imperialismo e contra o colonialismo europeus, foi sendo lentamente adaptada, através de sucessivos “corolários”, para degenerar naquilo a que o historiador William Appleman chamou de “anticolonialismo imperial”.

Talvez agora, nesta oportunidade, a política externa norte-americana possa compreender que os seus interesses vitais nada têm a ver com uma imposição ideológica ao resto do continente, mas com a construção de uma ordem internacional multilateral, baseada no respeito do direito internacional (que os Estados Unidos ajudaram a construir) e nas escolhas livres e soberanas dos respetivos povos. É altura para abandonar a diplomacia da ameaça, do embargo, e da retórica belicista. A administração Trump, tal como antes a guerra do Iraque, constituiu um sério dano à credibilidade internacional norte-americana. Basta de caos, de improviso e de caprichos pessoais. O novo presidente tem agora uma segunda oportunidade.

Nina Simone, de novo – It’s a new dawn, it’s a new day, it’s a new life…. And I’m feeling good.

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