Artigo
Guerra de versões
Os devaneios do extremismo disputam espaço com os fatos a respeito do golpe frustrado


O dia 8 de janeiro de 2022 foi tanto um ato de vandalismo extremo quanto uma tentativa tosca de golpe de Estado. Ainda não sabemos com muita clareza se de fato estava planejado algum processo de mobilização militar associado aos ataques na Praça dos Três Poderes. Mas, de toda forma, por trás do 8 de Janeiro, houve uma atitude totalmente ambígua dos comandantes das Forças Armadas em relação às eleições e ao resultado eleitoral. Hoje sabemos que o ex-comandante da Marinha Almir Garnier chegou a votar formalmente por um golpe.
Vale relembrar que a reação aos ataques, seja no campo das instituições, seja no campo da opinião pública, foi muito forte. De um lado, o presidente Lula conseguiu, ainda no próprio domingo da insurreição, ter ao seu lado tanto a presidente do Supremo Tribunal Federal, a então ministra Rosa Weber, como também os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira. No dia seguinte, alcançou o feito de angariar apoio unânime de todos os governadores recém-eleitos. Ao mesmo tempo, a maioria absoluta da opinião pública brasileira posicionou-se contra os atos de vandalismo.
Ainda assim, precisamos refletir sobre os motivos pelos quais, uma vez fracassadas as manifestações em sua intenção golpista e consolidada uma ampla rejeição da opinião pública ao vandalismo na capital federal, o bolsonarismo conseguiu manter seu nível de apoio ao longo do ano, inclusive com grande parcela de seus eleitores reiterando que não se arrependiam de ter votado em Bolsonaro para presidente. Os 12 meses que separam os dois eventos não foram suficientes para alterar significativamente a avaliação dos brasileiros sobre as cenas de escárnio, bestialidade e violência transmitidas ao vivo para um país em choque: nos dias seguintes ao ataque orquestrado, 94% da população desaprovou os atos, e 89% o faz até hoje, segundo dados da pesquisa Quaest. O levantamento indica que a memória está, sim, presente e a avaliação sobre a gravidade do que o País viveu se mantém lúcida. Ao mesmo tempo, os democratas brasileiros precisam se perguntar sobre por que o apoio ao bolsonarismo não retrocedeu depois dessa tentativa desastrada de golpe de Estado.
A maioria dos brasileiros continua a rechaçar o vandalismo de 8 de janeiro, mas não mantém a mesma unidade quando se trata de apontar os responsáveis
Se algo falhou ao longo desse período foi a incapacidade de produzir uma narrativa unificada sobre os acontecimentos. Para cada brasileiro que reconhece a influência do ex-presidente Jair Bolsonaro nos atos golpistas de 8 de janeiro, há outro brasileiro que refuta essa associação. Mesmo no Nordeste, região que sustentou a vitória petista na última eleição, um terço dos brasileiros rechaça a ligação entre o candidato derrotado nas urnas e a tentativa de golpe de Estado mediante invasão, de acordo com a mesma pesquisa.
A situação é ainda pior nas redes sociais. Nelas, outro termômetro indica que a disputa de versões sobre o que aconteceu há um ano ainda borbulha. Dados da consultoria Bites divulgados pelo jornal O Globo mostram que a retórica da extrema-direita, muitas vezes delirante, conseguiu controlar a repercussão sobre a data. Das 25 publicações no X, antigo Twitter, mais compartilhadas sobre o aniversário dos ataques, 20 eram de apoiadores do ex-presidente. Assim, passado o estado de choque da opinião pública em torno das cenas de vandalismo explícito do 8 de Janeiro, voltamos a mais do mesmo nesse campo da selvageria digital. Ali, o bolsonarismo, ao que parece, continua dominando a narrativa sobre o evento.
Para além do processo legal em curso no STF, que galga aos poucos a montanha de vândalos em busca de seus financiadores e mandantes, há uma ausência que palpita: a necessária construção por parte das instituições democráticas, da sociedade civil e de seus atores de uma narrativa consistente com os valores democráticos capaz de fazer frente à enxurrada de devaneios que sustenta a extrema-direita.
Por isso, os eventos que marcam, neste ano, o 8 de Janeiro deixam uma sensação ambígua em relação à democracia brasileira. De um lado, o fato de atores centrais dos Três Poderes (em especial o presidente Lula, o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, e diversos ministros do STF) participarem da cerimônia que rememora um ano dos ataques mostra bom nível de articulação entre as principais instituições políticas no Brasil, certamente importante para o reforço da nossa democracia, sobretudo em ano eleitoral. Por outro lado, não podemos deixar de apontar que, independentemente do fato de a maioria dos brasileiros manifestar-se de forma crítica ao episódio de 2022, temos diferentes interpretações sobre os acontecimentos e uma narrativa própria no campo da extrema-direita que ainda não foi derrotada. Assim, iniciamos 2024 da mesma maneira que terminamos 2022 ou começamos 2023: com a democracia em disputa no Brasil. •
*Leonardo Avritzer é coordenador do Observatório das Eleições e professor do Departamento de Ciência Política da UFMG. Andressa Rovani é jornalista e doutoranda em Ciência Política na Unicamp.
Publicado na edição n° 1293 de CartaCapital, em 17 de janeiro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Guerra de versões’
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