Artigo

Flávio Bolsonaro foi beneficiado indevidamente em seu julgamento

Já no caso de José Serra, também há desrespeito ao mesmo princípio, mas em desfavor do réu

Foto Wilson Dias/Agência Brasil Foto Wilson Dias/Agência Brasil
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Um dos pilares do Estado Democrático segue sob bombardeio: o direito a um julgamento justo. Os recentes desdobramentos nos casos envolvendo os senadores Flávio Bolsonaro e José Serra mostram a normalização de procedimentos de contornos autoritários e de potencial exceção no exercício das atividades judiciais. Nota-se, no caso de Serra, a se delinear uma grave ofensa ao princípio fundamental do direito a um julgamento justo e no caso de Flávio um benefício indevido ao réu.

O Artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que todos temos direito a um julgamento justo. Esse princípio fundante da modernidade e das democracias contemporâneas é resultado de um complexo processo histórico, marcado por idas e vindas, e consolidou procedimentos e regras para o exercício da justiça de forma a buscar como resultado uma decisão justa, que não prejudique ou beneficie indevidamente o réu.

As profundas chagas da Segunda Guerra gestaram as chamadas “Constituições rígidas” na Alemanha, Itália, Portugal e Espanha, que tinham como objetivo impedir a repetição de fenômenos autoritários cujos expoentes históricos foram o bonapartismo, o nazi-fascismo e as ditaduras. Nas palavras de Luigi Ferrajoli, essas Constituições trazem sementes antifascistas. A Constituição Brasileira de 1988 rendeu tributos a essas Cartas e trouxe a semente antiditadura.

Nesse sentido, um dos elementos centrais do justo na Constituição é o princípio do juiz natural, as normas que orientam a definição do julgador de cada caso. Devem ser claras e definidas antes de o caso se estabelecer judicialmente. Não há margens para uma escolha ad hoc arbitrária do juiz, mas a escolha resulta das regras já definidas num sistema lógico e organizado do exercício das competências judiciais. Não há julgamento justo se não for observado o princípio do juiz natural, independente e imparcial. Caso contrário, enseja-se a suspeita de ausência de justiça ou de uma justiça movida por interesses particulares.

Marcadamente desde a Lava Jato, o que se tem é a fixação arbitrária e ad hoc de juízos cuja competência é estipulada não com base no que o Direito determina, mas do desejo do julgador. A 13ª Vara Federal de Curitiba foi transformada numa espécie de juízo universal de todos os casos, atribuindo-se um mecanismo artificial de julgamento do que se relacionava à Petrobras. A competência dilatada de Curitiba, estabelecida com anuência do Supremo Tribunal Federal, acabou por se constituir em um juízo de exceção. O pior é que, em vez de se encerrar na Lava Jato, o que se vê é a naturalização da definição arbitrária do juiz natural. Importante destacar que essas distorções se dão em casos com apelo midiático e repercussões políticas. Atendem a interesses publicados, em vez de se guiar pela lógica do que é lícito e do é ilícito.

No caso do senador Flávio Bolsonaro, o STF definiu os critérios que estipulam a prerrogativa de foro, chamado popularmente de “foro privilegiado”. Regras simples: uma vez cessado o mandato, o titular perde a prerrogativa e não cabe foro especial para os atos praticados antes do início do mandato. Os atos reputados a Flávio são anteriores a seu atual mandato de senador, portanto, não se aplica o foro válido para senadores. Deputado estadual à época, hoje senador, ele não tem o mesmo foro que cabe aos deputados estaduais. Na aplicação simples da jurisprudência do STF, o caso deveria ficar na primeira instância. Mas o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidiu que iria julgar o processo. É grave ofensa ao princípio do juiz natural e ao sistema de justiça, nesse caso beneficiando, indevidamente, o réu.

No caso de Serra, também há desrespeito ao mesmo princípio, mas em desfavor do réu. A denúncia oferecida no âmbito da Lava Jato indica um provável processo penal de exceção, pois a conduta de lavagem de dinheiro, e outras imputadas ao tucano, seriam relativas à campanha eleitoral. O STF pacificou esse entendimento ao decidir que compete à Justiça Eleitoral julgar crimes eleitorais e os conexos. Logo, no caso de Serra, o juiz natural deveria ser a Justiça Eleitoral, e não a Justiça Federal comum.

O que se observa é uma ofensa ao direito humano fundamental do cidadão Serra de ter um julgamento justo. E uma ofensa ao direito da sociedade de haver um julgamento justo no caso de Flávio. Evidente que aqui não entro no mérito das ações ou investigações, fico restrito ao aspecto dos erros na definição da competência julgadora em ambos os casos. Trata-se de algo gravíssimo para o funcionamento da democracia constitucional, um dos elementos do que chamamos de “processo desconstituinte”, de esvaziamento tanto dos direitos e das garantias fundamentais quanto do regular funcionamento do Estado de Direito, Rule of Law, e do sistema de justiça.

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