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Filantropia socioambiental

No enfrentamento às mudanças climáticas, é fundamental apoiar soluções locais, concebidas pelas próprias comunidades

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Os brigadistas enfrentam uma luta inglória – Imagem: Mayangdi Inzaugarat/Ibama/Ministério do Meio Ambiente
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Em um país marcado por graves desigualdades sociais, econômicas e ambientais, racismo e machismo legados desde a colonização, a filantropia socioambiental possui papel relevante para fortalecer a luta dos grupos minorizados. Populações tradicionais, comunidades indígenas e quilombolas, agricultores familiares, a população LGBTQIAPN+, os movimentos negro e de mulheres, todos eles produzem soluções inovadoras para mudar a realidade de seus territórios e garantir mais qualidade de vida nas comunidades onde estão inseridos. Apesar disso, não têm protagonismo e lugar garantido em espaços de tomada de decisão e de definição de políticas públicas e financiamento. Nem acesso aos recursos que assegurem que suas soluções sejam implementadas.

No Brasil, as empresas, os institutos privados e as fundações corporativas ou familiares têm perfil mais executor. Ou seja, priorizam a realização de seus próprios projetos, em vez de financiar iniciativas desenvolvidas por outras organizações da sociedade civil, revelam dados da última edição do Censo Gife. Quase 70% dos recursos mobilizados pela filantropia local e independente, que doa especificamente para organizações comunitárias e grupos minorizados, são oriundos de fundações internacionais, aponta uma pesquisa desenvolvida em 2023 pela Rede Comuá, em parceria com a consultoria ponteAponte, cujos resultados foram compilados na publicação Filantropia que Transforma: Mapeamento de Organizações Independentes Doadoras para a Sociedade Civil nas Áreas de Justiça Socioambiental e Desenvolvimento Comunitário no Brasil.

Um relatório produzido pela Human Rights Funders Network alerta, porém, que as fundações do Norte Global controlam 99% dos financiamentos mundiais destinados aos direitos humanos e repassam somente 12% desses recursos para organizações do Sul e Leste Globais. O acesso a esses recursos traz limitações como complexidade dos processos burocráticos, dificuldades no acesso às informações e barreiras linguísticas, obstáculos para o financiamento direto e flexível para organizações que atuam no campo da justiça socioambiental e direitos humanos no Sul e no Leste Globais.

Com a questão climática, a situação não é diferente. Menos de 1% do financiamento chega, de fato, a organizações sediadas em países tropicais, segundo um relatório da Rainforest Foundation Norway. Dos fundos alocados nos últimos dez anos para apoiar esses direitos, apenas 17% incluíram ao menos uma organização local, representando 0,13% de todo o financiamento climático.

No Brasil, segundo o Censo Gife, o montante de recursos financeiros para áreas de preservação ambiental no período 2022–2023 correspondia a 13% do investimento realizado. Porcentual menor era destinado para comunidades remanescentes de quilombos (10%), terras indígenas (7%) e assentamentos (3%).

O investimento social privado ainda está muito concentrado em projetos desenvolvidos de cima para baixo, que desconsideram os grupos envolvidos

Esses grupos são os que mais sofrem e os que menos contribuem para as mudanças climáticas. Por vezes, são os principais responsáveis pela conservação da biodiversidade, pois fazem uso sustentável de nossas matas.

Atualmente, a Rede Comuá reúne 18 organizações da filantropia independente que doam recursos para grupos e movimentos da sociedade civil, com foco principal em acesso a direitos. Juntas, essas organizações já financiaram, desenvolveram ou cocriaram mais de cem soluções climáticas locais, em diferentes regiões brasileiras e em todos os biomas. Entre 2022 e 2023, elas investiram quase 400 milhões de reais em ações de justiça climática. Mais de 900 grupos e de 1 milhão de pessoas foram diretamente alcançados. A abordagem é centrada na inclusão dos grupos vulnerabilizados. Para a Comuá, as estratégias de mitigação, adaptação e financiamento climático devem focar na redução da pobreza, no fortalecimento de direitos e na melhoria da saúde e bem-estar.

Soluções climáticas locais são aquelas criadas por e para as comunidades, a partir da base, e que consideram as especificidades e vulnerabilidades dos grupos envolvidos. Afinal, são os grupos, coletivos, movimentos, lideranças e organizações da sociedade civil que conhecem a fundo o território onde vivem e as comunidades nas quais atuam, têm propriedade para propor e realizar ações que possam beneficiar a todos, melhorando a qualidade de vida nos territórios.

Manejo e uso sustentável das florestas, consórcio de espécies para garantir subsistência e segurança alimentar, monitoramento de unidades de conservação e terras indígenas, apoio a brigadas comunitárias contra incêndios e a organizações que atuam na conservação de biomas. Fundos emergenciais e de reconstrução, como o Fundo Regenerativo de Brumadinho. Produção e sistematização de conhecimento, como o Guia de Justiça Climática da Casa Fluminense, a reunir experiências de práticas, soluções e tecnologias sociais e ancestrais desenvolvidas em bairros, favelas e periferias. Esses são apenas alguns exemplos. Imagine o impacto nos territórios se ampliássemos o repasse de recursos diretamente para as comunidades locais seguirem protagonizando soluções para o clima.

No momento em que o Brasil se prepara para receber a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a ser realizada em Belém, em novembro de 2025, é tempo de pensarmos estratégias para que o investimento social privado apoie, de fato, as soluções climáticas locais, reconhecendo o protagonismo de organizações e movimentos de base comunitária. A filantropia comunitária e de justiça socioambiental é o caminho. •


* Jonathas Azevedo é diretor-executivo na Rede Comuá. Bacharel em Relações Internacionais pela UFF, especialista em Ajuda Humanitária pela PUC Rio e mestre em Inovação Social e Empreendedorismo pela London School of Economics and Political Science, tem experiência em projetos voltados à promoção dos direitos humanos, articulação comunitária, redução de violência, entre outros. Atuou ainda como consultor em monitoramento e avaliação, planejamento estratégico e gestão de fundos para atores do campo da filantropia.

Publicado na edição n° 1329 de CartaCapital, em 25 de setembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Filantropia socioambiental’

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