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Europa: esta crise e a outra

A emissão de dívida conjunta é um passo consciente rumo ao federalismo do bloco

O presidente da França, Emmanuel Macron. Foto: Fórum Econômico Mundial / Boris Baldinger O presidente da França, Emmanuel Macron. Foto: Fórum Econômico Mundial / Boris Baldinger
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Enquanto, no Brasil, Bolsonaro recomendava o uso de cloroquina, cujo uso terapêutico “não tem comprovação científica”, mas que, não a tendo, também não há “nenhuma certeza científica do contrário”, a União Europeia reunia-se em cimeira para tomar a decisão de subscrever em conjunto 750 bilhões de euros de dívida pública para um fundo de recuperação econômica. Como a vida política brasileira não é para amadores, é talvez melhor ficar-me pela Europa, tentando explicar ao leitor brasileiro o significado político dessa decisão.

Primeiro, ela é única na história da União Europeia. O projeto de integração política nunca havia chegado aqui, à decisão de emitir dívida com responsabilidade conjunta dos 27 Estados europeus. Alguns classificaram, a meu ver com razão, este como o momento Hamilton da Europa. Hamilton foi o primeiro secretário do Tesouro norte-americano que propôs contrair dívida em nome do Estado Federal, tendo equiparado a dívida pública a uma bênção pública, referência histórica que, sempre que invocada, deixa a direita dos dias de hoje muito embaraçada. Seja como for, a decisão agora tomada representa um passo consciente no sentido do federalismo europeu. Sim, ela é ditada pelas circunstâncias, é certo. São sempre as circunstâncias que marcam as mudanças e a principal razão por detrás da decisão é o estrago econômico da pandemia. Todavia, existe outra circunstância, menos conhecida, mas nem por isso menos poderosa – a memória da crise anterior e do desastre que a chamada “política de austeridade” trouxe à Europa. Talvez essa história interesse aos brasileiros.  

A austeridade seguida na Europa como resposta à crise financeira foi um gravíssimo erro político e a história econômica torna hoje tudo mais claro. Se compararmos a política econômica dos EUA com a europeia, o erro destaca-se facilmente: a política monetária expansionista norte-americana recuperou o emprego e o crescimento muito rapidamente, enquanto a austeridade europeia prolongou a crise, agravou a situação social e gerou sérios problemas para o projeto europeu ao promover a desconfiança entre os países do Norte e do Sul, entre o centro e a periferia. O quantitative easing, instrumento-base da opção monetária expansionista, foi adotado pelos Estados Unidos em 2008. Na Europa, só foi adotado em 2015, e sempre com o voto contra da Alemanha. Eis, portanto, a dimensão do erro – sete anos de atraso, de equívoco, de austeridade. Os resultados dessas duas políticas – a expansionista, nos Estados Unidos, e a austeritária, na Europa – estão à vista de todos os que querem aprender com os fatos. O primeiro teve sucesso. O segundo foi um fracasso.

Na verdade, bem-vistas as coisas, a política de austeridade nunca teve fundamento econômico, mas ideológico. A crise financeira que começou nos mercados financeiros e nos títulos financeiros subprime foi rapidamente transformada pela direita política europeia numa crise dos Estados “gastadores”. Depois veio o discurso das chamadas “reformas estruturais”, as quais, na verdade, nunca significaram outra coisa que não retirar proteção legal aos trabalhadores e reduzir os programas de proteção social. Vista no seu conjunto, a operação política não foi outra coisa senão um ajuste de contas histórico com os avanços sociais europeus. Para a direita, a crise foi a oportunidade de acabar de vez com a conversa do modelo social europeu. O alvo sempre foram as políticas estatais de redistribuição ou de promoção de igualdade de oportunidades. Dez anos depois, o discurso chegaria ao Brasil – as mesmas reformas trabalhistas e as mesmas reformas previdenciárias. Tudo igual, tudo insuportavelmente igual. O mesmo ódio ao Estado de Bem-Estar Social.

Para a Europa, a grande diferença entre as duas crises é que aprendemos com a primeira. Agora sabemos o que significa a austeridade orçamentária no momento em que as empresas e as famílias mais precisam do Estado. Dez anos depois, a Europa descobre-se enfraquecida com a saída do Reino Unido. Dez anos depois, a Europa descobre-se minada pela desconfiança interna. Dez anos depois, a Europa dá-se conta de que o seu papel no mundo está comprometido pelo descrédito da liderança global dos EUA. Dez anos depois, o mundo está mais desigual e os Estados nacionais mais fracos, agora que os povos mais precisam deles. Neste quadro, o que aconteceu na Europa – retirando as burlescas encenações de suspense político com cimeiras inacabáveis – foi uma decisão da maior importância histórica. Na verdade, tudo poderia ter sido bem pior. O medo não levou ao egoísmo e à violência, mas à unidade. Aprendemos. Aprendeu a Europa, aprendeu a Alemanha, aprendeu a direita europeia e aprendeu a esquerda europeia. Talvez o Brasil possa aprender também com essa história.

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