Artigo
Envio de minas antipessoal dos EUA para a Ucrânia impõe 30 anos de retrocesso nas leis da guerra
São proibidos meios e métodos que não diferenciem alvos legítimos (militares em combate) de civis


Em 1997, entrou em vigor um tratado que proibia a produção, o armazenamento, o uso e a transferência de minas antipessoal, uma arma de guerra que essencialmente explode quando qualquer pessoa pisa sobre ela, seja um combatente ou um civil, um adulto ou uma criança. A campanha para a aprovação do Tratado de Ottawa teve como ponto alto a visita da princesa Diana a Angola, que era então um dos países mais minados do mundo. O lobby humanitário em favor da adoção do Tratado era tão forte que Lady Di tornou-se a garota propaganda da causa.
À época, a adoção da nova norma foi saudada como um grande avanço humanitário nos conflitos armados. O tratado dava continuidade a uma longa e árdua estrada que tinha começado a ser trilhada pelo direito internacional em 1868, com a Declaração de São Petersburgo, documento que proibia nos conflitos o uso de projéteis explosivos e inflamáveis – como as apelidadas balas dum-dum, entre outras – que tivessem menos de 400 gramas. Em seguida, as duas Conferências da Paz de Haia, em 1899 e em 1907, agregaram uma série de novas normas sobre armas e munições, incluindo as disposições acerca do uso de minas marítimas explosivas.
Mandamentos religiosos e preceitos morais sempre existiram na guerra, mas, no século 19, o mundo passou a dar forma jurídica a esses padrões de comportamento na guerra, estabelecendo normas de valor universal. O Tratado de Ottawa surgiu nos anos 1990, portanto, como mais uma pedra na muralha que fazia contenção entre a humanidade e a barbaridade nos conflitos armados.
Uma decisão anunciada pelo governo americano nesta quarta-feira 20 fez, entretanto, essa muralha ancestral estremecer. O secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, anunciou que seu país passará a enviar carregamentos de minas antipessoal americanas para serem usadas por forças da Ucrânia contra o Exército russo e seus aliados, incluindo soldados de países como Coreia do Norte, que agem a serviço de Moscou no local.
“Eles nos pediram. Então, acho que é uma boa ideia”, disse Austin à imprensa durante uma visita oficial que o funcionário do governo Joe Biden estava realizando naquele momento ao Laos – curiosamente, um dos países mais infestados do mundo por minas antipessoal; minas essas que foram colocadas pelo Exército americano entre 1965 e 1973.
O anúncio feito por Austin ganhou imediatamente muita atenção por vários motivos – o incremento da ajuda americana à Ucrânia no final do mandato de Biden, a inovação no tipo de equipamentos, sobretudo de mísseis, que estavam sendo enviados etc –, mas pouca gente parece ter notado o principal efeito desse anúncio: as minas antipessoal são artefatos proibidos pelo direito internacional desde 1997 e sua produção, estocagem, uso e transferência deveriam ser proibidos.
Os EUA não são parte do Tratado de Ottawa, assim como a Rússia, mas a Ucrânia é, desde 2005, portanto, jamais poderia receber e usar esse tipo de armamento que será enviado pelos americanos.
No que diz respeito aos EUA e à Rússia, ambos países podem não estar sujeitos a este tratado, especificamente, mas o uso de minas antipessoal viola uma porção de outros dispositivos das regras da guerra contidos não apenas nas Convenções de Genebra de 1949, mas no direito consuetudinário ou costumeiro, que torna impossível o uso de minas antipessoal sem que haja violações a esses princípios humanitários.
Um dos princípios balizadores das normas da guerra é o da distinção – são proibidos meios e métodos de guerra que, seja por sua concepção, seja por sua forma de uso, não diferenciem alvos legítimos (militares em combate) de civis (que devem ser poupados das hostilidades). Uma mina que explode remotamente a partir da pressão exercida por um corpo humano não tem a capacidade de diferenciar quem está pisando sobre ela. Portanto, é ilegal não apenas por causa do tratado específico, mas porque viola um princípio geral das leis da guerra.
Outro problema é que esses artefatos são instalados para conter uma infantaria inimiga num dado momento, mas, se não explodem, podem permanecer ativos eternamente no terreno, até que alguém, mesmo um civil em tempos de paz, pise sobre a mina. Os americanos dizem que só exportarão um tipo de mina que se torna obsoleta após um certo tempo, mas isso não descarta o contato com civis inadvertidos durante a guerra, sem contar os casos de falha dos dispositivos, que podem seguir ativos, a despeito da programação.
Só nos últimos dois anos, 407 civis morreram e 944 ficaram feridos na Ucrânia por contato com minas antipessoal e com resíduos explosivos de guerra, conhecidos também pela sigla em inglês UXO, que se refere a todo tido de carga explosiva que, ao contrário do que se espera, não detona por qualquer razão quando lançada, e passa a funcionar involuntariamente como uma armadilha explosiva, à espera de contato para detonar.
As minas costumavam ser colocadas a mão, mas hoje são lançadas até por drones. O controle sobre as áreas infestadas é cada vez menor. Chuvas torrenciais e outros eventos climáticos podem muda-las de lugar. Os mapas de minas tornam-se inúteis, por isso. Todo o conhecimento acumulado a esse respeito desaguou na adoção do Tratado de Ottawa. Agora, com um único gesto, o governo Biden ameaça fazer esse avanço humanitário retroceder quase 30 anos.
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