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Entre passado e futuro, o PT precisa ainda superar dois importantes desafios

O embaraço de fundo é renovar a tradição do partido diante dos incentivos centrífugos oferecidos pela política brasileira

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Foto: Ricardo Stuckert
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Entre a Copa do Mundo, as eleições e pandemia, o ano de 2022 promete ser vertiginoso. Enquanto postulantes são cortados da Seleção e peladeiros desistem das urnas, uma organização em particular ocupa, mais uma vez, o papel de pivô da corrida presidencial: o Partido dos Trabalhadores. Não será, nem para o País, nem para o partido, uma eleição qualquer. Uma confirmação eleitoral do favoritismo do ex-presidente Lula seria um marco da resiliência do PT, que chegou ao fundo do poço em 2016 com a deposição da presidenta Dilma Rousseff e o desempenho historicamente ruim naquele período. Meia década depois, o partido retomou antigos patamares de popularidade, empreendeu uma vitoriosa campanha pela liberdade de Lula e tem atraído para seus quadros lideranças políticas importantes, como o senador Fábio Contarato (ES). 

No entanto, se o curto prazo parece bem encaminhado, no longo prazo o partido ainda precisa encarar desafios significativos. Dois desafios saltam aos olhos: superar a heterogeneidade territorial e promover a renovação dos quadros dirigentes e dos representantes políticos.

A regionalização do partido também terá condições melhores de ser enfrentada caso o favoritismo eleitoral de Lula se confirme

Os muitos legados e a federalização do partido

Os governos do PT ocupam um lugar importante no desenvolvimento do Estado de bem-estar brasileiro. Historicamente, a provisão de políticas sociais consolidada na Era Vargas era atrelada à condição empregatícia do cidadão – ao ponto de Wanderley Guilherme dos Santos comparar a carteira de trabalho a uma espécie de certidão de nascimento. Grossíssimo modo, tinha direitos sociais quem tinha emprego. Com a Constituição de 1988, o Brasil substituiu esse Estado de bem-estar truncado por um modelo universalista, almejando oferecer garantias como saúde, educação e previdência para toda a população, e não apenas a determinadas categorias. Embora os direitos sejam universalizados, o Estado muitas vezes é incapaz de prover o que a Constituição promete. O saneamento básico talvez seja o exemplo mais imediato.

Boa parte dos programas sociais dos governos petistas visou combater a pobreza.  E o sucesso dessas políticas é o cerne do legado petista. Mas, como a pobreza se distribui desigualmente pelo território brasileiro, os programas tiveram um resultado de combater a desigualdade regional, ainda que não fosse esse o objetivo principal.  Localidades onde parcelas expressivas da população receberam o Bolsa Família provavelmente experimentaram um avanço a nível municipal, não apenas a nível domiciliar. Especialmente quando, além das transferências de renda, essas localidades também foram beneficiadas por políticas como o Luz para Todos, o Mais Médicos, dentre outras. Por causa desse impacto regionalmente heterogêneo, talvez seja mais correto falar nos muitos legados do partido, especialmente onde não governou estados e municípios – como o Rio de Janeiro.

Isso talvez ajude a explicar o cenário tão regionalizado da política brasileira em geral. As bancadas de esquerda estão desproporcionalmente concentradas no Nordeste – com a exceção do PSOL. Da mesma forma, partidos como o NOVO e o PSL elegeram uma quantidade desproporcional de seus parlamentares no Sul e Sudeste.

Isso é potencialmente problemático, porque pode fortalecer interesses locais em detrimento de projetos nacionais, e é especialmente importante para um partido que sempre teve a União como horizonte político; no caso petista, essa federalização, ainda que tímida, produz uma tensão entre um polo onde o partido é localmente forte, mas a federação possui menos poder — como regiões Norte e Nordeste -, e um polo onde o partido é localmente fraco, mas a federação concentra mais poder — o Sudeste, talvez com a exceção do Espírito Santo.

Essa dualidade do PT esteve à mostra nas eleições de 2020: se, de um lado, o partido enfrentou a formidável máquina PSBista no Recife (PE) e ofereceu uma candidatura competitiva em Vitória (ES), além de governar quatro estados no Nordeste; por outro lado, terminou a disputa da maior cidade do país (São Paulo) num pífio 6º lugar, e foi mal em capitais como Rio de Janeiro e Belo Horizonte.

A debacle paulistana, em especial, é exemplar. Jilmar Tatto, em que pese suas credenciais internas, não era um candidato competitivo, justamente pela falta de projeção externa. Torna-se necessário perguntar então, por que o maior partido da América Latina escolheu um candidato fraco na maior cidade latinoamericana? O Diretório Nacional do PT (do qual Tatto é membro, registre-se) trocou o candidato do partido em Manaus, mas manteve Tatto na capital paulista. É em situações como essa que a tensão local-nacional se expressa: grupos locais em uma região poderosa do País são capazes de conquistar peso desmedido numa organização nacional, formando um descasamento entre a geografia econômica e de poder e a geografia eleitoral. 

O que nos leva ao segundo desafio.

A renovação das lideranças

Em todo o lugar e em qualquer partido, são pouquíssimos os privilegiados que podem se dar ao luxo de viver para a política sem precisar viver da política. Isso é característico da política moderna, e não é ruim que seja assim; antes dela, a política era um jogo de aristocratas, no qual só participavam aqueles que tinham dinheiro e tempo o suficiente. No PT atual, contudo, a balança parece ter pendido demais para o lado dos líderes locais. Uma parte disso é resultado da distribuição de poder interna pós-2016, quando o partido perdeu tanto a Presidência quanto diversas prefeituras, incluindo a de São Paulo. Isso conferiu poder àqueles que se mantiveram em seus cargos. Como consequência, o partido parece ser dirigido por figuras que são mais burocratas do que dirigentes.

Os casos do PT de São Paulo e do Rio de Janeiro, para citar alguns, ilustram bem as tensões produzidas quando as máquinas deixam de ser apenas habitantes dos partidos e passam a dar cartas demais no jogo. Isso porque as máquinas são locais, e o PT ainda parece ser o único grande partido com algum grau de nacionalização. E o que é bom para a parte nem sempre é bom para o todo.

No Rio de Janeiro, Washington Quaquá, por exemplo, prefere dividir o apoio petista entre o bolsonarista Cláudio Castro, do PL, e Marcelo Freixo (PSB). Embora a estratégia possa lhe render frutos, ela erode o que o partido tem de mais precioso: sua marca. Aqueles 28% que declaram ao Datafolha preferirem o PT o fazem porque identificam nele uma série de características e preferências que são manchadas pela política de alianças irrestrita.

Isso pode ser menos importante em querelas locais; afinal, são mais de 5.000 municípios e é uma federação de três níveis. Já a nível estadual, e num estado sob holofotes nacionais como o Rio, é difícil encontrar uma justificativa. O pragmatismo acaba sendo contraproducente para o partido – mas não para a máquina. Esse parece ser também o caso na cidade e no estado de São Paulo, onde as preferências da Capela do Socorro, reduto eleitoral dos Tatto, e da região do ABC, sede do ainda poderoso Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, parecem ocupar um espaço privilegiado dentro das estratégias partidárias.

Para partidos regionalizados, a ascensão política das máquinas pode ser um problema menor, vide o PSB, o MDB, e boa parte dos partidos brasileiros. Mas, para partidos cujo programa e estratégia eleitoral são nacionalizados, a decisão de um chefe local tem custos para o partido como um todo. 

Em que pese a crítica, boa parte da direção atual é a mesma que liderou a nau petista pela tormenta dos últimos anos

O governo das reconstruções

Não faltam ao PT condições para superar os desafios delineados acima. A renovação começou em 2020, apesar da notada ausência de quadros novos eleitos na cidade de São Paulo. Beatriz Caminha (Belém-PA), Brisa Bracchi (Natal-RN), Camila Jara (Campo Grande-MS), Carol Dartora (Curitiba-PR), Duda Hidalgo (Ribeirão Preto-SP), Laura Sito (Porto Alegre-RS), Macaé Evaristo (Belo Horizonte-MG) e Tainá de Paula (Rio de Janeiro-RJ) são alguns nomes de eleitas pela primeira vez que, felizmente, não seguiram o conselho de Quaquá. Mostram tanto a força eleitoral das mulheres quanto derrubam a falaciosa oposição entre o feminismo e as demandas populares, oposição essa que é um mero espantalho mobilizado de tempos em tempos para servir a disputas internas. Também o partido tomou iniciativa de incubar novos quadros com o Representa, programa que buscou auxiliar novas candidaturas em 2020. 

A regionalização do partido também terá condições melhores de ser enfrentada caso o favoritismo eleitoral de Lula se confirme. Nesse cenário, a força econômica dos grupos locais deixa de ser tão relevante. Construir um legado futuro, entretanto, requer nitidez sobre o legado passado e o presente. Depois de quase uma década de crise e anos de desmonte das capacidades estatais, o PT assumirá um país arrasado, o que deve impor restrições severas sobre a agenda do governo. Será um enorme desafio manter-se na ofensiva diante desse quadro. 

Nesse sentido, a escolha de Geraldo Alckmin como vice é uma tentativa de criar uma coalizão na elite que impeça aventuras golpistas – o que deve mesmo ser preocupação de qualquer agente político no Brasil de 2022. Considerações eleitorais e de governabilidade são secundárias, e qualquer análise que as coloque no centro me parece estar perdendo de vista o principal. No entanto, ainda que seja justificável, a aliança é incômoda para a base partidária e para o eleitorado mais fiel, e será bode expiatório dos insucessos ou recuos programáticos do governo, ainda que seja um sintoma de um problema – o cenário político delicado – e não ela mesma a causa de um programa recuado. Comunicar essa ambiguidade, manter a base fidelizada, recompensar a preferência dos 28% que o preferem: esses são os primeiros desafios que o PT enfrentará em sua retomada pós-2023. Cavalos de pau como os de 2015 podem não ser perdoados novamente. 

De todo modo, não se trata apenas produzir novos quadros – mesmo porque, em que pese a crítica, boa parte da direção atual é a mesma que liderou a nau petista pela tormenta dos últimos anos, e o fez com considerável sucesso. O desafio de fundo é renovar a tradição de um partido com projeto e atuação nacional diante dos incentivos centrífugos oferecidos pela política brasileira, expressos na corrida por sobrevivência parlamentar diante do fim das coligações e no orçamento secreto. E que consiga, diante de sua multiplicidade de legados, oferecer um projeto de futuro.

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