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É preciso expurgar o amadorismo dos governos

Para Walfrido Warde, matricular a nossa democracia na escola é condição à sua sobrevivência

Foto: Marcos Corrêa/PR Foto: Marcos Corrêa/PR
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Acabamos de ouvir as lamúrias de Salim Mattar, empresário brasileiro e, agora, ex-secretário de Desestatização do governo Bolsonaro. Justificou sua renúncia ao cargo, depois de mais de um ano, pela incompatibilidade entre o gênio criativo do empresário e o imobilismo do Estado. As organizações empresariais e o Estado são mesmo bastante diferentes. O que causa indignação, pelo menos em mim, é que insistamos em submeter a administração do Estado a gente despreparada para administrá-lo.

O que é preciso para que tenhamos um governo qualificado, capaz de solucionar os complexos desafios de administrar um país pujante em recursos naturais, populoso e diverso, profundamente desigual e de dimensões continentais?

Não há resposta simples. Mas há uma medida contra a qual se pode opor: expurgar o amadorismo dos governos. O profissionalismo deve ser um requisito material ao exercício de cargos públicos. A Constituição Federal manda que a União, os estados e o Distrito Federal mantenham escolas de governo à formação e ao aperfeiçoamento dos seus servidores. Elas compõem, hoje, a Rede Nacional de Escolas de Governo: uma articulação de instituições à formação e capacitação de servidores. Frequentá-las é requisito necessário à promoção. Mas esse é apenas um incentivo formal à perícia da nossa burocracia.

A Lei dos Servidores Públicos da União condiciona o exercício dos cargos efetivos a um estágio probatório de 24 meses, cuja finalidade é avaliar a aptidão e a capacidade do servidor. Adquirida a estabilidade, ao fim de dois anos, nenhum aprimoramento se exige à mantença do cargo. A educação continuada não é um dos deveres do servidor. E a imperícia não é causa de sua demissão.

Ainda que a Carta Magna exija que o servidor estude para ser promovido, não existem diretrizes de formação que definam os objetivos de aprimoramento e os paradigmas específicos de eficiência no desempenho de cada função.

Não há aqui pensamento e doutrina de Estado, como produzem célebres escolas de governo no mundo desenvolvido. Os louváveis esforços da nossa Escola Nacional de Administração Pública, e das outras mais de 200 entidades que compõem a referida Rede Nacional de Escolas de Governo, não dão conta de fazê-lo. Não há um método de aferição de desempenho. Não se sabe o que o Estado espera dos seus mais variados agentes e, portanto, não há (nem poderia haver) instrumentos efetivos de verificação de resultados. Tudo isso torna impossível a criação de um modelo de incentivos à eficiência governamental.

Se resolvêssemos esses problemas, contudo, um abismo ainda mais profundo separaria os cargos efetivos e em comissão, de um lado, e os eletivos, de outro. A porção perene da burocracia seria submetida ao mais alto padrão de excelência técnica, a destoar da parte transitória da mesma burocracia, para a qual a alfabetização é o único requisito intelectual.

Ao presidente da República basta que saiba ler e escrever (assim como aos demais mandatários de cargos eletivos). Os seus amplos poderes o habilitam a desarranjar todo o bom trabalho de um treinado, incentivado e bem-intencionado funcionalismo.

A imposição de outras condições intelectuais de elegibilidade seria, contudo, um entrave intolerável à afirmação dos processos democráticos. Essa é, portanto, uma tarefa do eleitor, que deve desprezar a propaganda e a falaciosa demonização da política profissional para se concentrar nas informações inequívocas sobre a formação, a experiência e as capacidades de cada candidato.

Um sistema efetivo de determinação de objetivos, de capacitação e de avaliação de agentes públicos é, de todo modo, medida urgente de uma igualmente emergencial reforma da Administração Pública brasileira.

Matricular a nossa democracia na escola é condição à sua sobrevivência, porque incapaz de satisfazer as necessidades do povo, arriscará que o povo conclua por sua inutilidade, iludido por defeitos que podem ser remediados pela vontade política dos seus representantes.

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