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É ilusão achar que o trumpismo sai debilitado

‘A capacidade dessas forças extremistas de se manterem coesas e atuantes é algo que vai depender de muitos fatores’, escreve Celso Amorim

Foto: SAUL LOEB / AFP
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Como conta Tito Lívio em suas Décadas, os “gansos do Capitólio” deram o alerta que salvou a República Romana de ser tomada por invasores gauleses, no longínquo ano de 390 a.C. Vinte e quatro séculos e alguns anos depois, a polícia do Capitólio norte-americano não teve (ou não quis ter) a mesma eficiência em relação a uma multidão de supremacistas brancos que, incitados por Donald Trump, buscaram impedir a confirmação da eleição de Joe Biden. Passados alguns dias da “insurreição”, para usar as palavras do próprio presidente eleito, nuvens pesadas continuam a pairar sobre Washington, sem que saibamos se as cenas que nos causaram espanto e estupefação marcam o fim de uma era ou o início de um processo de radicalização, cujos desdobramentos só podemos tentar adivinhar.

Qual será a capacidade dessas forças extremistas de se manterem coesas e atuantes é algo que vai depender de muitos fatores, alguns dos quais escapam ao controle do Estado e do governo norte-americano. Mas é uma ilusão achar que o trumpismo necessariamente sai debilitado desse episódio inédito, repleto de elementos tragicômicos, que solaparam de forma, eu diria, irreparável a credibilidade das instituições e o prestígio dos Estados Unidos no mundo. Não sabemos ao certo o que está por vir no que resta desses “treze dias que abalaram o mundo”, para parafrasear o clássico de John Reed sobre a revolução soviética. A maneira como serão tratados os insurretos – inclusive seu líder máximo – poderá dar uma ideia da mitigação do dano, mas não o apagará de todo.

Para aqueles que, da periferia, contemplam o que ocorre no centro do “império”, é difícil analisar o que teremos pela frente, enquanto a densa névoa causada pelos apoiadores fanáticos do MAGA (Make America Great Again) não se desfizer ou, ao menos, começar a levantar. Normalmente, pouco mais de uma semana antes da posse de um novo presidente, todas as atenções deveriam estar concentradas na nova administração, nos projetos de governo, nas indicações para postos-chave. Mas não é isso o que está ocorrendo.

Ainda assim, algumas análises recentes merecem atenção. Destacaria um artigo de Joseph Nye, o inventor do conceito de “poder brando” ou soft power, no site Project Syndicate, sobre o intervencionismo na política externa dos EUA. Corretamente, Nye assinala que a prática de intervir nos assuntos internos de outros Estados não é privilégio de um ou de outro partido, embora as motivações e as formas de intervenção tenham variado, sendo o uso direto da força o modo mais extremo. De maneira geral, essas ações, mesmo que sob a capa de preocupações humanitárias, tiveram consequências desastrosas.

BURNS SEMPRE ME PARECEU RAZOÁVEL, ALGUÉM COM QUEM SE PODE TROCAR IDEIAS

De todas as indicações de Joe Biden para postos-chave do sistema de segurança nacional e política exterior, a que mais me chamou a atenção, pela carreira prévia do designado e pelas características de sua personalidade, foi a do novo diretor da CIA. William “Bill” Burns é o primeiro diplomata de carreira a ocupar essa função absolutamente crucial. Seu passado, como vice-secretário de Estado no governo Barack Obama e outros altos postos diplomáticos – bem como sua atuação mais recente como presidente do Carnegie Endowment for Peace – leva a crer que a influência de Burns não ficará restrita à espionagem e a operações de terreno, chegando algumas a golpes e insurreições de feitio variado, mas se estenderá a definições estratégicas de política exterior.

Burns deve manter a Doutrina Monroe, mas talvez abandone a diplomacia do porrete. Amorim, Lula, Ahmedinejad e Erdogan, no acordo sabotado pelos Estados Unidos. Fotos: CIARAN MCCRICKARD/WEF E ATTA KENARE/AFP

No período em que fui ministro das Relações Exteriores, no governo do presidente Lula, recebi Bill Burns duas vezes no meu gabinete em um espaço relativamente curto, entre o fim de 2009 e o início de 2010. Como relato no meu livro Teerã, Ramalá e Doha, ambas estiveram relacionadas aos esforços de encaminhar uma solução para a questão do programa nuclear iraniano, objeto de uma solicitação explícita de Obama a Lula. Pouco antes da visita de Mahmoud Ahmedinejad ao Brasil, em novembro de 2009, o alto emissário do governo norte-americano veio trazer argumentos para convencer o Irã dos méritos do “acordo de troca” de urânio levemente enriquecido por elementos combustíveis. Em negociações prévias, os Estados Unidos haviam feito uma proposta nesse sentido, mas Teerã relutava em aceitar. Poucos meses depois, em preparação da visita que a secretária de Estado Hillary Clinton faria em março de 2010, Burns seria portador de uma mensagem diferente: a de que deveríamos abandonar esses esforços para evitar que o Irã tivesse algum ganho político, sem resultados práticos que garantiriam os objetivos de não proliferação nuclear. De certa maneira, foi o prenúncio da reação que Washington viria a ter à “Declaração de Teerã”, que, juntamente com a Turquia, o Brasil obteve em maio. A rejeição ao acordo ocorreu a despeito do incentivo renovado em carta de Obama a Lula para tentar que o Irã fizesse o “gesto de criação de confiança” (cujos elementos, explicitados na missiva, constam integralmente da declaração).

A despeito das ambiguidades da atitude norte-americana, de que Burns foi porta-voz, em ambas as ocasiões o diretor designado da mais poderosa agência de inteligência do mundo me pareceu razoável, com quem é possível trocar ideias, independentemente de eventuais discordâncias. Sua designação para a CIA faz pensar, mesmo sem cometer a ingenuidade de achar que os velhos métodos (inclusive o uso da força) serão abandonados, que o intervencionismo, sempre presente na política externa dos Estados Unidos, poderá assumir formas mais sutis do que aquelas que marcaram os anos Trump.

Em relação à América Latina isso pode significar que a Doutrina Monroe será mantida, mas que o Corolário (Ted) Roosevelt – a diplomacia do porrete (como se viu com relação à Venezuela) – talvez seja algo abrandado. Como lembra Nye, “em termos de consequências, os meios são tão importantes quanto os fins […], Mas é preciso ter presente que surpresas por vezes ocorrem e os eventos saem do controle”.

*Foi chanceler do governo Lula e ministro da Defesa do governo Dilma Rousseff

Publicado na edição n.º 1140 de CartaCapital, de 15 de janeiro de 2021

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