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De vítima a culpada: a narrativa de desqualificação de mulheres

‘Cenas da audiência do caso Mariana Ferrer escancaram uma realidade há muito conhecida por nós, advogadas feministas’

Estupro
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Mariana Serrano e Amanda Claro*

Em 03 de novembro, foi publicado vídeo de audiência do caso de estupro de Mariana Ferrer. Esse caso tem chamado atenção, não apenas pelo fato de ter como vítima uma digital influencer, mas também pela coragem da influencer de se insurgir contra violências concretas que aconteceram durante a disputa judicial e que são simbólicas contra todas as mulheres.

Durante a audiência, o advogado do réu expôs fotos da vítima que não se relacionam com o caso, dizendo que ela estava em “posições ginecológicas”. Afirmou que o processo era um “showzinho” de Mariana, dizendo que a manipulação da história seria o ganha pão da vítima. Disse que pedia a Deus que seu filho nunca encontrasse uma mulher como ela.

Diante dessas graves acusações, Mari implorou ao juiz que interviesse para resguardar sua dignidade, pois não havia cometido nenhum crime e que nem assassinos são tratados da forma como ela estava sendo tratada.

As cenas da audiência, embora tenham revoltado mulheres e ativistas, escancaram uma realidade há muito conhecida por nós advogadas feministas: a Narrativa da Desqualificação. Em casos onde há violência contra mulheres, é recorrente o uso dessa Narrativa por advogados de defesa, que se armam de elementos discursivos que buscam analisar as condutas da vítima para retirar desta os atributos simbólicos que compõem, no imaginário popular, a figura da vítima ideal.

A Narrativa da Desqualificação demanda a utilização de fatores absolutamente irrelevantes à violência, como a vida pregressa da vítima, sua conduta sexual, suas roupas, sua conduta nas redes sociais, seus hábitos; tudo com o objetivo de delimitar que apenas a mulher tida como santa seria digna de defesa caso sofra violências. É interessante notar o esforço do advogado do réu de afastar Mariana do rótulo de “virgem”, justamente com esse intuito. Se sua virgindade for uma mentira, ela não será uma vítima ideal.

Ao estabelecer que a única mulher digna de defesa é a “donzela em apuros”, aquela mulher sem qualquer agência, o patriarcado delimita que a mulher que exerce real protagonismo sobre a sua vida não é um sujeito de direitos e não merece a proteção do Estado e da sociedade.

Ocorre que a “donzela em apuros” não existe. É conveniente para a sociedade patriarcal estabelecer a dicotomia mulher boa/ mulher má, pois o modelo de mulher abnegada e servil ao lar é difícil de se exercer e muito pouco atrativo. A única forma de assegurar aderência a esse modelo é estabelecer consequências terríveis a quem não o segue. E uma dessas consequências é ser um objeto sempre à disposição que, se violentado, não só não terá proteção jurídica e social, como será publicamente julgado.

A realidade é essa: ou somos tratadas como incapazes de decidir por nós mesmas ou, quando saímos desse lugar, somos vilãs que não merecem humanidade. A igualdade formal perante a lei não é acompanhada da igualdade material.

No final das contas, a Narrativa da Desqualificação desumaniza a todas as mulheres já que a única mulher que merece defesa, a “donzela em apuros”, não é uma figura real, não é um ser humano, e toda nós, mulheres com qualidades e defeitos, somos descartáveis. Ainda que a mulher que sofra violência represente a figura da dona de casa abnegada, a Narrativa da Desqualificação vai encontrar algum elemento que a desumanize – seja porque o estupro foi cometido por seu marido, ou porque o estupro seria sua única forma de experiência sexual em razão de sua aparência física.

É comum no Direito Penal que se analise o Réu e o seu contexto como elementos que podem aumentar ou diminuir a pena. A defesa diz que Réu é um bom sujeito, querido pela sociedade e que isso deve ser levado em conta no seu julgamento. Porém, quando falamos em crimes cometidos contra mulheres, a Narrativa da Desqualificação propõe a inversão dessa lógica, buscando desqualificar a vítima.

A advocacia de defesa é essencial para a democracia e não deve ser cerceada. Porém, nenhum direito pode ser exercido em excesso e o limite do direito de defesa esbarra na humanidade da vítima. Ao utilizar-se de argumentos morais não jurídicos – a conduta sexual da vítima – para articular uma defesa de um acusado de violência sexual, a defesa extrapola o direito de ampla defesa e passa a reforçar a cultura do estupro.

Como então defender um acusado de violência sexual sem partir para a Narrativa da Desqualificação?

Propomos como forma de mediação entre o direito de defesa do acusado e a dignidade da vítima a Tática da Humanização, como ferramenta de elaboração de defesas responsáveis. Ela colabora não apenas para a construção de uma prática jurídica superior, como também evita repercussões negativas à imagem do réu verdadeiramente inocente – o repúdio público coletivo ao caso Mari Ferrer é um grande exemplo de como a Narrativa da Desqualificação está fadada ao rechaço e, num horizonte próximo, ao insucesso.

Alguns exemplos da Tática de Humanização envolvem práticas já muito utilizadas no Direito Penal a casos que não envolvem violência sexual, como o pedido de segredo de justiça para preservação da identidade do réu, a busca de álibis que tragam dúvida razoável à materialidade dos fatos, a coleta de testemunhas sobre a vida pregressa do Réu, a impugnação de provas, a indicação de assistentes técnicos em provas periciais, a oitiva de testemunhas diretas e indiretas dos fatos, a avaliação de nulidades processuais que inviabilizem a continuidade do processo ou a condenação, dentre outras.

Porém, todas as práticas acima dependem invariavelmente de um não-fazer que é a parte mais relevante para a Tática da Humanização: exercitar o direito de defesa sem fazer julgamento de valores morais que em nada se relacionam com os fatos descritos na acusação. Todas as possibilidades acima não se propõem a destruir por completo a vida da vítima, mas a garantir o legítimo exercício do direito de defesa do ofendido.

O acusado inocente não precisa de mais do que as defesas já citadas. Quem é inocente não precisa se socorrer em sensacionalismos.

* Dra. Mariana Serrano – Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP. Coordenadora do Núcleo de Diversidade e Inclusão no Trabalho da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/SP. Membra da Comissão de Direito Sindical da OAB/SP, além de Co-fundadora da Rede Feminista de Juristas e do Projeto Trabalho e Assédio. Especialista na Advocacia para Famílias, além de Direito Sindical e Coletivo do Trabalho.

** Dra. Amanda Claro – gestora de empresas mestre em International Business and Management pela University of Westminster, em Londres, no Reino Unido. Advogada graduada em Direito pela Universidade de São Paulo. Co-fundadora da Rede Feminista de Juristas. Consultora em gestão de recursos humanos, processos de reestruturação com foco em pessoas e em programas corporativos para diversidade de gênero, sexual e cultural. Como advogada, atua nas áreas de direito individual do trabalho, direito de família, responsabilidade civil, direito das mulheres e da população LGBT.

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