Um dia, no futuro longínquo, talvez percebamos que algo de bom aconteceu no Brasil em 2020. Hoje, não dá para ver nada. Foi um ano que começou mal, piorou dramaticamente e termina horroroso. Fizemos uma eleição municipal, mas nem ela trouxe alento. Feita às pressas, acochambrada, com recordes de não participação, sem debates e sem contraditório, só podia dar no que deu, a vitória da Arena e do PFL.
Bolsonaro festeja, enquanto o País lamenta 200 mil mortes e 7 milhões de doentes, a economia real afunda e nada anda. Não foi derrubado, manteve azeitados os negócios da família, aproveitou-se dos luxos do poder, o que mais alguém como ele poderia querer?
A pandemia foi-lhe favorável. De um lado, adiou as cobranças, se não de resultados, ao menos de projetos e planos minimamente consistentes. Ao término do primeiro ano do governo (por assim dizer), as pesquisas mostraram que a paciência dos eleitores com sua incompetência e verborragia estava perto de se esgotar, e parecia que chegaríamos à metade de 2020 com crise aguda de popularidade.
Com a pandemia, a pauta da opinião pública mudou e sua responsabilidade se diluiu, pois não há nada melhor que uma tragédia mundial para minimizar as falhas de um governante. Continuamos a ter uma economia parada, o desemprego em alta, a renda em queda, sem política de educação, saúde, meio ambiente e tudo o mais. Só que a culpa de Bolsonaro ficou menor.
De outro lado, a epidemia obrigou-o a fazer o que nunca quis e que seus economistas abominavam: destinar recursos aos mais necessitados, dando-lhes condições de sobrevivência. O trocado que pretendiam dar foi aumentado pelo Congresso e o medo da reação popular fez com que a cobertura do programa crescesse. Assim, surgiu um auxílio emergencial substancialmente maior e mais duradouro, que fez bem à sua avaliação.
Se olharmos a mais recente pesquisa do Datafolha, realizada agora em dezembro, vemos o saldo de popularidade que o auxílio propiciou: no Nordeste, onde o fenômeno foi mais visível, a reprovação diminuiu de 52%, em junho, para 34%. Como estava em 35% em agosto, parece que o ganho de popularidade foi mesmo de 17 a 18 pontos porcentuais e não subiu nos últimos meses. No total, portanto, considerando o peso do Nordeste na população brasileira, o auxílio teria dado ao capitão entre 4 e 5 pontos porcentuais de melhora na taxa nacional. Ou seja, o auxílio reverteu a tendência de queda que vinha de 2019 e ainda o fez crescer uns pontinhos.
O que acontecerá com seus números de agora em diante? A epidemia, à medida que o tempo passar, ainda poderá ser usada como desculpa? E o que vai acontecer quando o auxílio for interrompido, pois é insustentável em seu patamar atual de custos, da ordem de 50 bilhões de reais ao mês?
Mas houve outro ganho para o ex-capitão em 2020: ao longo do ano, em parte em razão de suas reações à pandemia, surgiu um novo tipo de bolsonarismo. Mais irracional, mais xucro, mais ignorante. Menor do que aquele que chegou a existir na eleição de 2018, quando ainda havia quem acreditasse que Bolsonaro era “novo”, “diferente” e “merecia uma chance”, mesmo que fosse “grosseirão”. O ano sepultou essas fantasias, à medida que o governo se revelou um amontoado de generais ridículos, políticos picaretas e burocratas terraplanistas. O que fizeram no enfrentamento do coronavirus, do gasto de milhões em remédios inúteis ao incentivo a comportamentos idiotas, é evidência de sua falta de qualificação.
Não há mais ilusões a respeito de Bolsonaro. Há quem esteja com ele por pequenos interesses e não precisam disfarçar, como os militares que apenas querem uma boquinha. Há os muito ricos que só esperam lucrar com as jogadas do governo, toleram-lhe a breguice e partem em seus jatos para o conforto de Miami. Há os bilionários da mídia e seus leais funcionários, que se horrorizam com ele, mas não o descartam, pois podem ter de usá-lo para derrotar a esquerda.
O bolsonarismo renovou-se: quem acompanha e admira o ex-capitão, com tudo que é e representa, é um tipo de gente peculiar. São autoritários, supremacistas, misóginos, detestam pobres, negros, indígenas, homossexuais, mulheres que não aceitam “seu lugar”, artistas. Andam com pistolas na cintura e enfiam o dedo na cara dos fracos. Não usam máscaras e não se vacinam.
É um equívoco supor que o modesto crescimento da avaliação positiva de Bolsonaro entre os mais pobres seja uma “popularização”. Há gente pobre que pode se parecer com os bolsonaristas de hoje, mas são minoria. Quem o aprovou quando veio o auxílio vai desaprovar quando acabar.
Tomara que 2021 seja o inverso de 2020: bom para o Brasil e péssimo para Bolsonaro. Feliz Ano-Novo.
Publicado na edição n.º1137 de CartaCapital, de 23 de dezembro de 2020
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