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Atuação de Conte foi bom exemplo contra o soberanismo tresloucado da extrema-direita

Ele atuou como um bombeiro no confronto contra incendiários em uma crise italiana que assinala e confirma os problemas da União Europeia

Conte foi um bombeiro. Foto: Aris Oikonomou / AFP
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O espectro da situação partidária na Itália talvez devesse ser resumido de forma drástica, ao dividir a arena entre o partido dos incendiários e o partido dos bombeiros.

Mais ou menos repentinamente o grupo de parlamentares integrantes do Movimento Italia Viva decidiu romper com a aliança que garante maioria absoluta nas duas casas do Parlamento ao governo de Giuseppe Conte.

Lance que está longe de ser inesperado: confiar em Matteo Renzi é impossível, como sublinha o líder do PD, herdeiro do Partido Comunista e da esquerda Democrata-Cristã, ou seja, daquelas agremiações que nos tempos de Enrico Berlinguer e Aldo Moro cogitaram de algo chamado “compromisso histórico”. Isto é, aliança dos dois maiores partidos italianos nas eleições de 1976, a saber o PDC com 36% dos votos e o PC com 34%.

 

Matteo Renzi, que chegou até à condição de premier tempos atrás, é inveterado piromaníaco, disposto a tudo para favorecer a si mesmo. A saída de Renzi e de Itália Viva do governo abalou fortemente a maioria absoluta do governo na Câmara e reduziu fatalmente o mesmo gênero de maioria no Senado. Foi precipitada desta forma uma crise política que revigora o papel dos incendiários sem negar a chance de reação aos bombeiros.

Nesta conjuntura campeia a personalidade de Conte, um advogado competente sem filiação partidária, disposto a conduzir um governo capaz de neutralizar a ameaça dos incendiários, ou, por outra, de uma extrema-direita enraivecida, sempre inclinada a propor a solução de eleições imediatas enquanto grassa a pandemia. Renzi conseguiu dar alento às esperanças de Matteo Salvini, de Giorgia Meloni e mesmo de Silvio Berlusconi, à testa da sua Forza Italia, embonecado e transplantado mais do que nunca.

Renzi prontificou-se a uma contribuição, a se revelar decisiva. Abriu-se desta forma uma crise de governo para levar Conte a invocar a confiança, conforme manda o figurino parlamentarista, tanto na Câmara quanto no Senado. Os argumentos de Conte a favor do seu governo são óbvios, além de bastante meritórios. A Itália agiu, ao longo da pandemia, como um exemplo para toda a União Europeia. Criou, entre outros avanços, uma vacina anti-Covid-19. Manteve a taxa de infecção por muito tempo, e no momento, por volta de 5%, já vacinou perto de 1,5 milhão de cidadãos, com a aprovação dos setores sociais e do empresariado.

Conte enfrentou os parlamentares com um discurso bastante objetivo para acentuar todos os acertos da política governista, inclusive o êxito diplomático que fez do Recovery Plan, previsto pela EU, maior do que qualquer outro dos orçados na mesma ocasião. É um plano de algo mais de 200 bilhões de euros, destinado inevitavelmente a representar um apoio formidável à economia peninsular. A argumentação do primeiro-ministro teve largo êxito na Câmara, de sorte a lhe garantir, na segunda-feira 18, a confirmação da maioria absoluta, a despeito dos deputados de Italia Viva, que se abstiveram. Na votação do Senado, tida como mais difícil, faltaram-lhe seis votos para sair da maioria relativa para a absoluta. Mas, segundo a Constituição, mesmo a relativa lhe confere o direito de governar e existem observadores da situação dispostos a acreditar que o atual premier Conte pretende valer-se do benefício constitucional. A respeito dessa possibilidade, talvez venha a ser decisivo o encontro entre o presidente da República, Sergio Mattarella, e o primeiro-ministro. Conversação entre ambos houve e durou 40 minutos. O teor do colóquio por ora não é conhecido. Salvo melhor juízo, o chefe do Estado não ficaria desagradado caso Conte queira permanecer no cargo.

A atuação do bombeiro Conte é um bom exemplo para quem se empenha contra o soberanismo tresloucado da extrema-direita. Não me arrisco a dizer que esta situação tem parentesco com a nossa, que nos torna súditos de Jair Bolsonaro, para espanto do mundo. Nada nos abona ou nos releva. Na atmosfera embaçada da nossa invencível precariedade, aparece o rosto de Rodrigo Maia como se fosse ele o possível salvador da pátria. Levo as mãos aos poucos cabelos que me restam. Sei que a situação italiana planta-se em um patamar profundamente distinto no confronto com o nosso. Como sempre, qualquer semelhança não ganha a qualificação de coincidência, simplesmente não existe.

De todo modo, o confronto entre incendiários e bombeiros não tem fim, inclusive nesta crise italiana que assinala e confirma os problemas da União Europeia.

Publicado na edição nº 1141 de CartaCapital.

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