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Artigo: Delações premiadas no Brasil não foram usadas para busca da verdade

Para Pedro Serrano, Palocci é o mais vistoso caso de acusação fraudulenta produzido pela Lava Jato

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Quando Antônio Palocci anunciou que faria delação, criou-se no País um clima de hecatombe: “O homem que colaborou com o governo Lula, especialmente na relação com o mercado, teria confissões de impacto”. De fato, sua delação interferiu diretamente nos rumos políticos. Mas, anos depois, a delação de Palocci é um verdadeiro sinônimo de fraude processual, muito embora seja longo o caminho para sustar os efeitos políticos e jurídicos nocivos que produziu.

Dois passos iniciais foram dados. O Supremo Tribunal Federal considerou haver interesse político na inclusão da delação de Palocci nos processos contra Lula dias antes das eleições de 2018 e reverteu um ato do então juiz Sérgio Moro. A Polícia Federal, por sua vez, arquivou um dos inquéritos gerados pela delação por falta de provas. A PF constatou que os relatos do ex-ministro são fruto de notícias de jornais e buscas no Google, e que há falta de lastro com a realidade em fatos e datas relatados.

Palocci talvez seja o mais vistoso dos casos de delações fraudulentas produzidos pela Lava Jato, que repete um padrão de uso distorcido do instrumento, com evidentes contornos de processos penais de exceção. É mais um ingrediente do autoritarismo líquido que se tem esparramado pelas democracias. Mais um elemento de tratamento do ser humano como inimigo do Estado, não como cidadão ou cidadã com direitos. Mais uma medida que esvazia o sentido da Constituição, sem retirá-la do lugar.

As delações no Brasil não foram usadas como ferramentas de busca da verdade dos fatos, mas como caminhos para a construção de discursos acusatórios de elevada estridência midiática e sem base probatória. Contribuíram para a fragilização da democracia ao ajudarem a conferir verniz jurídico e de cumprimento da Constituição a processos cujos conteúdos materiais são compostos de medidas de persecução de um inimigo político.

Inicialmente, é preciso considerar que a tendência na subjetividade humana é olhar de forma punitiva, alinhando-se com os acusadores. Um exemplo pueril é ver uma viatura policial na casa de alguém. A tendência é pensar-se “o que será que essa pessoa fez?” e não em “o que será que o Estado está fazendo na casa dessa pessoa?”. Sobre essa base subjetiva, a máquina acusatória do Estado criou processos nos quais a figura da delação surge como prova definitiva, quando deve ser um meio de investigação e jamais de produção de provas.

No Brasil, isso se acentuou pelo método usado. Primeiro, a operação revestiu-se de intensa publicidade e marketing, fazendo do nome “Lava Jato” uma marca poderosa. Isso levou à construção de ambientes de pré-condenações e à percepção de que a Lava Jato era uma coisa só, concentrada em Curitiba, quando são dezenas de inquéritos no País a correr em paralelo. Segundo, o delator compareceu não como alguém a delatar um fato específico relacionado a um aspecto da investigação policial, mas como um “confessor da vida”. Fala de todos os deslizes cometidos, reais e imaginários.

Os delatores confessaram, portanto, uma enormidade de crimes. Parte é verdadeira e ampara-se em provas, mas a maioria revelou-se inverídica ou sem suporte probatório. Os dados mostram que houve arquivamento em mais de dois terços da delação da Odebrecht no Supremo Tribunal Federal.

A dinâmica estabelecida na assinatura dos acordos de delação premiada estimulou o delator a contar verdades embutidas em mentiras ou a exagerar nos relatos para conseguir a atenção dos investigadores. Os acordos transformaram-se em espaços de negociação, com o delator e seus advogados tentando seduzir as autoridades a dar importância às suas declarações e, com isso, obter os benefícios do trato. As histórias dos delatores tiveram alto poder de destruição da imagem dos acusados quando divulgadas na mídia. Desta forma, a Lava Jato acabou por transformar em mercadoria um instrumento de investigação.

Outra distorção frequente é o delator ter parte de suas acusações anuladas ou não comprovadas, mas não perder os benefícios do acordo firmado, sinal de que a negociação da mercadoria “delação” foi vitoriosa.

Sou favorável à existência do instituto da delação premiada, pelo potencial que tem no combate a crimes, mas é preciso mitigar os efeitos negativos gerados pela forma como tem sido usado no Brasil. Impedir o uso do instrumento como mercadoria, delimitar o foco da delação, deter a divulgação de acordos antes que as acusações tenham sido comprovadas pelos investigadores e retirar os benefícios quando algum aspecto delatado se mostrar inverídico são alguns aperfeiçoamentos sem os quais as delações seguirão a servir aos processos de desconstitucionalização e de autoritarismo líquido hoje existentes no Brasil.

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