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Após invasão nos EUA, o que resta de democracia no Brasil está sob ameaça

‘Bolsonaro tem sido o líder mundial mais diretamente alinhado ao ideário e estilo político de Trump’, escreve Rafael R. Ioris

Donald Trump e Jair Bolsonaro: uma ligação umbilical. Ou não (Foto: Alan Santos/PR) Donald Trump e Jair Bolsonaro: uma ligação umbilical. Ou não (Foto: Alan Santos/PR)
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Por Rafael R. Ioris*

Os eventos na capital dos Estados Unidos na semana passada demonstraram de maneira contundente que tradição não garante a manutenção da institucionalidade democrática em país algum. De fato, mesmo tendo sido o país onde os princípios modernos de democracia – como representação popular formal, separação dos poderes, alternância no comando via transferência pacífica – foram primeiramente instituídos, a maior potência econômica e militar do planeta vive hoje uma das suas maiores crises políticas. E ainda que a eleição de Biden tenha sido confirmada por todas as autoridades competentes, o clima de tensão no país segue muito alto e a própria sobrevivência do sistema parece em risco.

Indicando boas razões para crescentes preocupações domésticas e mesmo internacionais crecentes sobre os rumos daquele país, o que vimos nas semanas seguintes ‘a eleição do novembro de 2020 foi que, liderados por um magnata imobiliário corrupto da extrema direita, apoiadores da agenda extremista xenofóbica, autoritária e mesmo de supremacia racial branca do presidente derrotado tem questionado a legitimidade do pleito e prometido reverter o resultado do mesmo de forma a manter Trump no poder. Tais dinâmicas culminaram na invasão violenta do Congresso norte-americano que ocorreu no dia 6 de janeiro de 2021, evento histórico, traumático e que, ao contrário do que esperavam Trump e seus apoiadores, serviu mais para deslegitimar o grande líder e seus seguidores agressivos, e aglutinar as forças políticas tradicionais, a mídia e a opinão pública em geral em defesa da institucionalidade, do que para impedir a certificação oficial dos resultados eleitorais.

É incerto o que Trump esperava efetivamente ganhar ao insuflar sua base a ações tão graves e inusitadas já não dispunha de meios legais ou militares para impedir a certificação de Joe Biden. Talvez somente manter sua relevância como líder entre seus partidários? Talvez efetivamente forçar uma ruptura institucional? O fato é que os Estados Unidos continuarão imersos no mais alto clima de polarização política que o país enfrentou desde os anos 1960, e dentro de um contexto onde grupos radicais extremistas conseguem ter um maior peso e influência do que em períodos anteriores. Sem a intenção de analisar aqui questões mais amplas dos eventos e de seus significados para os rumos políticos da democracia norte-americana, alguns pontos que se intensificaram nos últimos dias e que parecem ter relevância para entender não somente o que está em curso na terra de Lincoln mas também para o Brasil.

Em primeiro lugar, os eventos da última quarta-feira revelaram com nitidez a enorme capacidade de um líder demagógico de extrema direita de mobilizar, via redes sociais, milhares de pessoas, ao redor de um país continental em meio a uma pandemia histórica, a agirem coletivamente com violência, e em nome de uma causa forjada e mentirosa, contra uma das vacas sagradas históricas do país, o prédio do Congresso norte-americano. Da mesma forma, as acões do dia 6 de janeiro refletiram bem o grau de polarização profunda que vive a sociedade americana, onde cada lado vê o outro como uma ameaça à sua própria existência e modo de vida, situação que, para ser redimida, requereria, pois, uma luta, violenta se necessária pela sobrevivência.

No que se refere à leniência com que os invasores, na sua imensa maiorias de etnia caucasiana, foram tratados pelas forças polícias, e mesmo na composição de várias lideranças dos distintos grupos paramilitares e de supremacia racial que coordenaram as ações, os eventos da semana passada indicam que os serviços repressivos, de inteligência e mesmo militares dos Estados Unidos tem um grau de infiltração de ideologias raciais, autoritárias e mesmo terroristas do que era conhecido pelo grande público. Por fim, embora Trump tenha manchado um pouco sua imagem frente ao cidadão médio e mesmo entre membros do seu partido, ficou claro que Trump segue forte entre os Republicanos, dada sua enorme capacidade de mobilização das bases do partido, e vários destes políticos seguem diputando pelo vindouro espólio do Trumpismo com Trump fora da presidência.

Se na auto-proclamada terra da democracia, tanta regressão institucional e mesmo no estado de direito ocorreu em cerca de quarto anos, em grande parte, pelas ações de um líder político de viés autoritário e personalista, o que se poderia esperar para o país que ainda tem como presidente o fã número de Trump? De fato, caberia, em especial, perguntar o que viria (virá) a ocorrer em um país com tradição democrática recente, frágil e superficial, que vem experimentando um grau historico de ataques ‘as instituições democráticas e que tem forças armadas não profissionais e com um histórico de desrespeito ‘as regras democráticas?

Bolsonaro tem sido o líder mundial mais diretamente alinhado ao ideário e estilo político de Trump. Não só segue desmontrando menosprezo pela pandemia em curso, continuou a prestar apoio ‘as ações ilegais de Trump sobre as eleições, despretigiando ainda mais o Brasil no cenário global e pondo em risco o relacionamento do país com o governo Biden, como também agora começou, como seu mestre, a lançar dúvidas antecipadas sobre o pleito eleitoral de 2022. Seu apoio entre as forças armadas segure alto, em grande parte via as benesses que ele continua a oferecer ao seus colegas de caserna, e sua conexões com forças para-militares milicianas no estado do Rio de Janeiro é notório e crescente ao redor do país. As instituições jurídicas que já vinham se politizando e, assim, entrando em um processo de degeneração, estão hoje ainda mais controladas pelos atuais donos do poder. Agravando ainda mais esse quadro, a estrutura partidária fragmentada do Brasil dá ainda mais vazão para que alianças espúrias possam construir, em conluio com juízes e promotores alinhados, um caminho fraudulento de permanência no poder.

Assim, se mesmo nos EUA a democracia não parece assegurada, o cenário para o que resta da democracia no Brasil parece estar ainda mais sob ameaça. Como reverter esses rumos deveria ser o foco dos e das democratas de todos os naipes, credos e viéses ao longo dos próximos dois anos. Os riscos de não fazê-lo certamente serão altíssimos e seria melhor não pagar pra ver.

*Rafael R. Ioris, Professor de História e Política Latino-Americana na Universidade de Denver e Pesquisador do Instituto de Estudos do Estados Unidos do Brasil (INCT-INEU).

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