A vaga da degradação política espalha-se pelo mundo a partir dos EUA

'Trump provocou um dano significativo à democracia', escreve José Sócrates

O ator Jake Angeli, militante de extrema-direita que invadiu o Capitólio, nos Estados Unidos. Foto: Saul Loeb/AFP

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Passei os últimos três dias a ler, enfeitiçado, a biografia de Mussolini, M – O Filho do Século, recentemente publicada em Portugal. O titulo é estupendo – poucas vidas singulares encheram aquela época europeia, feita de trevas, terror e violência. Depois, o livro está muito bem escrito. Segundo percebi, a inspiração do escritor Antonio Scurati foi fazer a biografia como se estivéssemos num teatro, com as personagens mais importantes convocadas a subir ao palco uma e outra vez para contar a sua história juntamente com seus estados de alma mais profundos e íntimos. Sim, nesse ponto algo poderá estar romanceado, mas com que talento. Se não foi exatamente assim, poderia muito bem ter sido. Gosto dessa forma. Não há boa literatura sem imaginação e é justamente na narrativa que vai além dos meros fatos históricos que o livro sobre Mussolini se eleva. Para o fazer é necessária uma boa cultura histórica e filosófica, mas é, sobretudo, necessário conhecer a política, ou melhor, conhecer a ação política. Só assim é possível produzir um relato tão encantador.

O livro também acertou em cheio no tempo. Não sei se o autor o planejou ou se foi apenas um acaso, mas não haveria momento melhor que estes últimos anos para estrear. É absolutamente extraordinário como a atmosfera do livro nos é familiar. Tudo ali nos parece de agora, deste século – a entrada da violência no debate público, o retorno às paixões e à política do puramente emocional, a vontade política como elemento radical que não reconhece limites, nem barreiras, nem compromissos. Tudo é possível. Sim, podemos fazer tudo quando temos um só povo, um só chefe, um só propósito. Um só. No fundo, sempre o mesmo problema, o mesmo paradoxo. Por um lado, a democracia que se exprime na sua essencial pluralidade, por outro lado, a nação, a comunidade, o Nós, na sua ancestral aspiração a ser um único. O Povo-Um. Como resolver o problema? As tentativas atuais parecem todas inspiradas na velha visão política que utiliza como critério a distinção “amigo-inimigo”. Sim, é preciso dar-lhes um inimigo. E um chefe. Só um inimigo cria um povo homogêneo e só um chefe pode comandar a luta. Inimigo e chefe. Um chefe para dar propósito ao espírito e à alma nacional, seja lá o que for que isso signifique. Um chefe para pôr termo às desordens do parlamentarismo feito de disputas, de divisões e de balbúrdia. Cem anos depois, o mundo parece de novo à procura de um Duce. O livro pode ser sobre a tragédia passada, mas alerta para a seguinte.

 

SÓ UM INIMIGO CRIA UM POVO HOMOGÊNEO E SÓ UM CHEFE PODE COMANDAR A LUTA

Depois disso, as imagens dos Estados Unidos deixam-nos em silêncio. A invasão do Capitólio é apenas mais uma cena de uma longa história, mas que tem a particularidade de nos avisar que nem a capital imperial está protegida dessa vaga de violência política. O episódio é estarrecedor pelas suas características – o incitamento veio diretamente do presidente, a ocupação visava impor pela força um regime derrotado nas urnas, os atos de violência tiveram a tolerância inadmissível das forças policiais. Todas elas são gravíssimas, sem esquecer a última, que indicia o fenômeno miliciano e de infiltração policial que o Brasil conhece tão bem.

Dizem que a política vai agora entrar em cena, e o mundo espera a resposta. Este não é apenas um assunto norte-americano, ele interessa a todo o espaço democrático. A forma como os Estados Unidos reagirão ao que aconteceu determinará por muito tempo a tolerância da democracia com a extrema-direita e terá um óbvio impacto no prestígio internacional de Washington. É absolutamente necessário separar as águas. O Partido Republicano, que andou todos esses anos a brincar com fogo, deve abandonar imediatamente o aventureirismo político para o qual foi arrastado. Trump provocou um dano significativo à democracia dos EUA negando-lhe o seu momento de unidade e de comunhão nacional – o momento em que o derrotado concede e saúda o vencedor. Percebo que a prioridade democrática número 1 deva ser a unidade nacional. Mas a unidade deve ser conseguida sem transigências com quem deliberadamente tentou o golpe de mão, o uso da força, para desrespeitar os resultados eleitorais. Unir o país, mas sem concessões. E, sobretudo, nada de compromissos com a extrema-direita. A democracia norte-americana deve levar a sério o que se passou. O mundo inteiro estará a ver.


Aqui, em Portugal, entramos também em campanha eleitoral para a Presidência da República. E também aqui a vaga de degradação política chegou de forma avassaladora. A entrada na campanha do candidato da extrema-direita mudou tudo. O espetáculo é agora de violência, agressão pessoal­ e brutalidade. Primeiro nas palavras, começa sempre nas palavras. O candidato diz as coisas mais repugnantes sobre os adversários, sobre os ciganos e sobre os pobres que recebem auxílio do Estado e que são culpados de “viver à ­custa de quem trabalha”. Garante que não quer ser presidente de todos os portugueses, mas somente o presidente das “pessoas de bem” – que ele próprio, mais tarde, dirá quem são. A linguagem não poderia ser mais esclarecedora da inspiração brasileira. Bem-vistas as coisas, essa direita salazarista nunca deixou de existir em Portugal. Estava apenas adormecida pela história e à espera do momento certo. Trump e Bolsonaro deram a senha – a moderação e o civismo democrático são filhos do politicamente correto e é preciso acabar com ele. Eis a primeira impressão geral da campanha – selvageria, baixeza e apodrecimento. Ventos de desafios sopram por todo o mundo. O século vive agora com o fantasma do anterior. Resta saber quem serão os seus filhos.

 

Post Scriptum

A esquerda portuguesa não resiste a entrar no jogo populista. Uma das candidatas usa igualmente a cartada do combate à corrupção, sem nenhum respeito pela presunção de inocência, pelos direitos individuais garantidos pela Constituição, ou, mais simplesmente, pela boa educação e respeito devido aos demais. Toda uma carreira política dedicada à maledicência – maldizer os adversários, os ricos, os poderosos e maldizer também os seus próprios camaradas. Maldizer para agradar aos pasquins e garantir popularidade fácil. O próprio Presidente da República tem de se defender das maldosas insinuações da candidata. No final, fica-nos a enjoativa impressão que nada disto tem outro objetivo que não seja disfarçar um enorme vazio político.

*Ex-primeiro-ministro de Portugal

 

Publicado na edição n.º 1140 de CartaCapital, de 15 de janeiro de 2021

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