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A linguagem neofascista no Brasil contemporâneo

‘Bolsonaro reativa em seu populismo características fascistas indeléveis’, escreve o professor e linguista Carlos Piovesani

O presidente Jair Bolsonaro. Foto: Evaristo Sá/AFP
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Há poder na linguagem. Uns conhecem-no parcialmente, outros o desconhecem e não poucos o subestimam. Tal como se diz nos versos da canção, que trata de outra força motriz, a linguagem tem o poder de erguer e de destruir coisas belas.

Usar sem reserva um último e radical ato de linguagem: o comando à execução. Eram assim os discursos de Hermann Göring, ministro do Interior da Prússia, em fevereiro de 1933. Göring fundamental para que Hitler alcançasse o posto de chanceler da Alemanha. A partir do dia 07 daqueles mês e ano, Göring anunciouproteção policial a qualquer um que fosse levado a “puxar sua arma no combate contra a ralé e a canalha internacional” – mais claramente, contra os partidos social-democrata e comunista alemães. Dez dias mais tarde, ordenou que a polícia evitasse qualquer processo contra as ‘associações nacionais’, SA, SS e Capacete de Aço. Todas elas poderiam fazer uso de suas armas sem hesitação.

A história não se repete: “Não estamos assistindo ao regresso do fascismo como este existiu antes. O passado nunca é o presente”, afirma o historiador Federico Finchelstein, ao pensar nas recentes ascensões da extrema-direita em várias partes do mundo. E acrescenta o seguinte: “As atuais manifestações de neofascismo e populismo têm importantes antecedentes históricos”.

 

Além de conceber relações dinâmicas entre o fascismo e o populismo, Finchelstein estabelece entre eles uma diferença fundamental: “Para o populismo, a vontade singular da maioria não pode aceitar outros pontos de vista. Nesse aspecto, o populismo assemelha-se ao fascismo como uma reação a explanações liberais e socialistas do político. E assim como o fascismo, o populismo não reconhece um espaço político legítimo para uma oposição que o acusa de agir contra os desejos do povo e de ser tirânico, conspirativo e antidemocrático. Mas essa recusa em reconhecer a legitimidade da oposição normalmente não excede a lógica da demonização de discursiva. Os opositores são transformados em inimigos públicos, mas, apenas retoricamente”.

Bolsonaro reativa em seu populismo características fascistas indeléveis: a violência como fator de regeneração social, a exclusão de grupos fragilizados, o uso exponencial das mentiras e o flerte com a ditatura.

A presença ou a falta de violência são, portanto, decisivas no estabelecimento de fronteiras e distinções entre o fascismo e o populismo. Além disso, de modo análogo à passagem do fascismo ao populismo, Finchelstein afirma que poderia ocorrer o caminho inverso: do populismo a um neofascismo: “Quando o populismo passa dessa inimizade retórica para práticas de identificação e perseguição dos inimigos, podemos estar falando da sua transformação em fascismo ou em outra forma de repressão ditatorial”. Se, por um lado, o fascismo enaltece a ditadura, o populismo nunca o faria. O fascismo concebe, enaltece e pratica formas cruas de violência política, enquanto o populismo tende a rejeitá-las.

Em que pesem a pertinência e a relevância da proposta de distinção entre o fascismo e o populismo elaborada por Finchelstein, é preciso lhe acrescentar uma consideração sobre os poderes da linguagem. Só assim podemos mensurar os riscos e perigos dos discursos de Jair Bolsonaro. Aliás, o atual presidente do Brasil é concebido pelo próprio Finchelstein como um populista e um “fascista wannabe”: o líder político populista que mais se aproxima do fascismo em toda a história. Isso porque Bolsonaro reativa em seu populismo características fascistas indeléveis: a violência como fator de regeneração social, a exclusão de grupos fragilizados, o uso exponencial das mentiras e o flerte com a ditatura.

São inúmeros as falas de Bolsonaro que fazem apologia da violência ou a incitam. Quando do massacre do Carandiru, em 02 de outubro de 1992, em que 111 detentos foram mortos pela Polícia Militar, Bolsonaro vociferou: “Morreram poucos. A PM tinha que ter matado mil!”. No ano seguinte, ele ainda diria fora e dentro da própria Câmara que era favorável ao fechamento do Congresso. A atitude abertamente antidemocrática não lhe rendeu mais do que uma mera advertência.

Antes de alcançar o status de celebridade política, Bolsonaro já empregava uma linguagem eivada de traços fascistas. É o que ocorreu na conhecida entrevista que Bolsonaro concedeu ao programa “Câmara Aberta” da TV Bandeirantes, no dia 23 de maio de 1999. Nela, o então deputado disse o seguinte: “sou favorável no caso do Chico Lopes que tivesse pau de arara lá. Ele merecia isso, pau de arara. Funciona. Eu sou favorável à tortura, tu sabe disso”; “Só vai mudar no dia em que nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazendo o trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil.”; “Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem. Em tudo e quanto é guerra, morre inocente.”

No dia 17 de abril de 2016, o plenário do Congresso votava favorável ou contrariamente ao afastamento de Dilma Rousseff na presidência da República. Havemos de nos lembrar que a sequência dos votos foi ao mesmo tempo tediosa, repugnante e comicamente trágica e compreendeu votos em nome de Deus e da família, em nome dos eleitores do Estado do parlamentar e do futuro dos filhos. Havia certa expectativa de que Bolsonaro suspendesse o tédio com seu voto. Infelizmente, ele não a decepcionou. Em um contexto de contestação de instituições democráticas e com uma inédita relevância política, seu voto era esperado com certa ansiedade, estava investido de importância e iria nos aterrorizar.

O sadismo de Bolsonaro é ainda mais estarrecedor, porque concentra o terrível contraste entre o sorriso com que inicia seu voto e a alegria revanchista com que fala dessas vitórias, de um lado, e as dilacerantes dores físicas e os irreversíveis traumas psíquicos sofridos por quem passou por sessões de tortura. Ao dedicar seu voto à memória de um dos maiores torturados da ditadura brasileira entre 1964 e 1985, Bolsonaro pronuncia seu nome quase aos gritos e sílaba por sílaba, como se a altura excessiva e a extensão duradoura de sua pronúncia revivessem, aumentassem e distendessem o prazer de quem faz sofrer e a dor e a angústia de quem sofre. Como se a dose de crueldade já não tivesse extrapolado limites democráticos e humanitários, Bolsonaro ainda lhe expande e precisa com um aposto que sucede o nome do torturador: “o pavor de Dilma Rousseff”.

Já nas eleições presidenciais de 2018, mais precisamente a sete dias do segundo turno daquele pleito, Bolsonaro fez um discurso dirigido a apoiadores reunidos na Avenida Paulista em São Paulo em uma modalidade possivelmente inédita. Sua voz chega até seus partidários via telefone e sua imagem é reproduzida em um telão. A despeito da distância, candidato e eleitores estão em alta sintonia, interagem e estimulam-se mutuamente. Além dessa difusão, o pronunciamento estava já destinado a circular por outros meios.

Num cenário calculadamente ordinário, enquanto fazia esse pronunciamento atroz, Bolsonaro sorria a maior parte do tempo. Uma narrativa alicerça essa e praticamente todas as falas de Bolsonaro e dos bolsonaristas: em uma origem idílica, tudo eram flores em nosso reino, até que, com o correr dos tempos, os inimigos ali se infiltraram e produziram uma decadência ética, um declínio moral e uma degeneração sexual. A

pureza que conhecíamos fora maculada e precisa ser reintegrada por meio de uma “limpeza” que nos livre dessa nódoa perigosa e crescente. Há aí uma polarização simplista entre os amigos da pureza (“nós”, “nossa pátria”, “Amigos”) e os inimigos que espalham a sujeira (“marginais vermelhos”, “gangue que tem a bandeira vermelha”, “Vagabundos”, “bandidos”, “petralhada”). Essa polarização impõe uma “guerra”, em que é preciso eliminar os oponentes: “esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”.

Para que não haja dúvida, Bolsonaro diz quem são esses inimigos, o que os caracteriza e o que eles fazem. Seu pronunciamento pode ser resumido a uma perseguição obsessiva dos adversários, porque ele se dedica muito mais a apontá-los, detratá-los e a ameaçá-los do que a agradecer seus apoiadores e a lhes pedir que continuem em campanha até o final das eleições. Não há uma única proposta de política pública. Mas abundam as variações da violência e do banimento que recairão sobre os adversários: “a faxina”, “vão pra fora ou vão para a cadeia”; “serão banidos”; “apodrecer na cadeia”; “vai tudo vocês para a ponta da praia”; “uma limpeza nunca vista na história do Brasil”, “a lei no lombo de vocês”.

Não há dúvidas de que em tudo o que é dito transpira ódio e exala fascismo. Isso não significa que a intervenção não compreenda variações. Em seu início e em seu final, há espaço para o reforço da identificação de grupo, para a consolidação de um efeito de pertença à “maioria”, ao “Brasil de verdade”, e ainda para certo entusiasmo, ainda que também ele contaminado por intensa animosidade. Mas a carga patética raivosa mais ou menos bem distribuída por todo o corpo central do discurso concentra-se no ponto a partir do qual ocorre a simulação de uma mudança de interlocutor.

De seu exórdio até certa passagem de seu pronunciamento, Bolsonaro dirigia-se diretamente aos seus partidários, quando então simula passar a falar com o principal líder dos inimigos: Lula. A mudança acontece neste trecho “E seu Lula da Silva, se você estava esperando o Haddad ser presidente para soltar o decreto de indulto, eu vou te dizer uma coisa: você vai apodrecer na cadeia”. É justamente em meio a essa modificação de interlocutor que o então candidato do PSL mais projeta um discurso de ódio, tanto no que diz quanto nas maneiras de dizer, porque é sempre vociferando que ele faz ameaças de violência física e até de extermínio de adversários políticos.

Além disso, a impressão de fazer de Lula, Lindbergh Farias, Haddad, Petralhada, Bandidos do MST e do MTST seus interlocutores diretos produz um efeito de coragem. Bolsonaro investe-se de bravura e simula falar de modo franco e autêntico, aguerrido e sem rodeios aos seus piores e mais poderosos adversários. Aparenta ser alguém que não somente não tem medo de dizer o que pensa negativamente sobre alguém, mas o faz diretamente para a pessoa concernida e com toda franqueza e valentia de um soldado que encara e enfrenta o inimigo em uma guerra. Em razão de um sólido amalgama entre posição política e postura estética, a agressividade de Bolsonaro promove a adesão de boa parte do eleitorado e catalisa os discursos de ódio e de completo desrespeito pelos mais básicos direitos humanos. Entre outras tanas declarações de seus eleitores que vão nesta mesma direção, eis estes dois emblemas do ódio condensado: “Jair Bolsonaro vai descer a borracha nesses vagabundos aí”. (eleitor de Minas Gerais, classe B, 28 anos); e “Pra ele, se tem que matar, mata. Por isso, o povo está atrás dele”. (eleitor de Pernambuco, classe D, 39 anos).

Ao longo de sua breve carreira militar e de sua longa trajetória política, Bolsonaro já falou para se descomprometer, para detratar e tentar eliminar adversários tornados inimigos e criminosos, para incitar a violência ao outro, para calá-lo simbólica e fisicamente. Suas falas fomentam direta e indiretamente a violência. Desde sua ascensão do baixo clero político, as já muito agressivas falas de Bolsonaro promoveram um grande aumento da violência verbal entre apoiadores. Nesse sentido, houve uma chocante ampliação do número de sites neonazistas durante seu atual governo de extrema direita. Além dessa expansão da violência verbal, assistimos atônitos e indignados ao crescimento de atos de violência propriamente ditos: repórteres e profissionais da saúde foram agredidos, policiais foram filmados atacando e torturando jovens negros e pobres. Ante esse recrudescimento dos abusos e da brutalidade, o Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro excluiu os casos de violência policial do relatório anual sobre violações de direitos humanos.

O discurso de ódio, as apologias da violência, as declarações que incitam à agressão, mas também as recentes falas negacionistas no meio de uma pandemia, concorrem para fomentar o descaso com a vida humana, a selvageria e as mortes. Com Artur Lira e Rodrigo Pacheco nas presidências da Câmara e do Senado, Bolsonaro voltou a defender o “excludente de ilicitude” para policiais em serviço. Trata-se mais uma vez de um ato radical de linguagem, que não pode ser subestimado. Esta é uma porta aberta e um primeiro e terrível passo rumo a mais extermínios de marginalizados e oprimidos de distintas sortes.

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