Artigo

A cor e a classe da tragédia ‘natural’ no Recife

A tragédia não é natural, mas sim resultado do encontro das chuvas com determinadas condições ditadas pela economia e política. Vejamos que condições são essas

Moradores carregam pertences retirados de casas destruídas pelo deslizamento na Vila dos Milagres, no Recife (Foto: SERGIO MARANHAO / AFP)
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“A cidade não para, a cidade só cresce

O de cima sobe e o de baixo desce”

Chico Science e Nação Zumbi

No grande alagamento de 1975, uma tragédia terrível, a classe média e a burguesia pernambucana foram também diretamente afetadas. Perderam parentes, viram suas casas alagadas, tiveram grandes prejuízos materiais. De pronto, o governo pernambucano, em plena ditadura empresarial-militar, efetuou uma série de medidas estruturais, construindo várias barragens e não poupando dinheiro público para resolver de vez as grandes cheias do Capibaribe.

A tragédia de 1975 foi mais “democrática”. As vítimas não estavam apenas nos morros, favelas e alagados. A tragédia de 2022, ao contrário, teve um claro corte de classe/raça (e gênero) na lista de vítimas. Essa percepção é essencial para desmistificar a noção de “tragédia natural”. Vamos pensar juntos. Do dia 27 ao dia 29 de maio, tivemos chuvas intensas, acima do volume médio esperado, em toda região metropolitana de Recife. Contudo, na hora de olharmos a lista dos mortos, feridos, desabrigados e desalojados, não vamos olhar para Espinheiro, Casa Forte, e Poço da Panela. Vamos ter que olhar para Ibura, Malvinas, Muribeca, Conjunto Marcos Freire, Jardim Monte Verde.

Chove a mesma chuva em Muribeca e no Espinheiro. Mas em Muribeca temos uma lista interminável de tragédias. No Espinheiro, não. E já nos adiantamos para evitar caricaturas: não estamos reclamando que só morreu pobre, preto e favelado; desejando a morte de pessoas ricas e dos setores médios. Estamos justamente chamando atenção para o claro corte de classe e raça nas mortes.

Com essa percepção, uma primeira conclusão se impõe: a chuva foi assombrosa, acima da média, mas as mortes e tragédias são resultados do encontro da chuva com as condições socioeconômicas precárias, com a negação de direitos, a pobreza, a miséria e o racismo estrutural. A chuva é “natural” (no final do texto, explicamos as aspas), as mortes não. A chuva é parte da natureza, a moradia precária, não.

Se a tragédia não é natural, mas sim resultado do encontro das chuvas com determinadas condições ditadas pela economia e política, vejamos que condições são essas. Vamos focar a reflexão em Recife. Segundo dados organizados pelo gabinete do Vereador Ivan Morais (PSOL-Recife), essa é a política do PSB nos últimos anos:

Vale a pena transcrever as conclusões da nota técnica do mandato de Ivan Moraes a partir da análise dos dados.

  • Os percentuais de investimento em urbanização de áreas de risco nas gestões do PSB tiveram os níveis mais baixos dos últimos 20 anos!
  • A média de investimentos em urbanização de áreas de risco, no período de 09 anos do PSB à frente da Prefeitura do Recife, é de 0,37% do orçamento geral, bem abaixo da média de 0,94% nos anos anteriores.
  • R$ 152,5 milhões foram investidos em urbanização de áreas de risco nos 09 anos de gestões do PSB, enquanto no mesmo período foram investidos 3 vezes mais em manutenção do sistema viário (recapeamento e tapa-buraco): R$ 452 milhões!!!
  • Os R$ 42,9 milhões investidos em 2021, maior volume nos 09 anos de gestão do PSB, ainda é 40% inferior ao gasto com manutenção do sistema viário no mesmo período: R$ 71,2 milhões!

Não é possível chamar de “tragédia natural” o resultado de uma escolha de política pública e orçamentária que simplesmente abandona a construção de moradia popular e a urbanização de áreas de risco. Se nos últimos 10 anos, ao invés da política adotada pelo PSB que privilegia as construtoras, especulação imobiliária e os bairros ricos, tivéssemos caminhado em sentido diferente, vidas não seriam perdidas e pessoas não estariam desalojadas e desabrigadas nesse momento.

Vale lembrar que o governo federal de Jair Bolsonaro realizou um corte substancial no orçamento para Gestão de Riscos e Resposta a Desastres, 35% à menos que o ano anterior, daí a quantidade de mortes em uma série de eventos de desabamentos este ano, em Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e Petrópolis (RJ). Para que se entenda a profundidade do corte orçamentário, no ano de 2012, a Gestão Riscos e Resposta a Desastres teve um orçamento de 4,2 bilhões de reais, enquanto em 2022 temos R$ 447,9 milhões. O planejamento e execução de obras em áreas urbanas não só sofreu um grande corte no valor orçamentário, mas também no autorizado. O que demonstra o caráter antipopular, burguês e racista do governo Bolsonaro.

Nesse ponto da reflexão, temos que destacar um conceito muito citado nos últimos anos, o racismo estrutural. Falar que o racismo é estrutural significa dizer que ele é fundante e basilar do capitalismo brasileiro – isto é, das suas relações socioeconômicas e de poder político. É impossível pensar uma dimensão da realidade brasileira sem o marcador social da raça. Com a formação e aplicação do orçamento não seria diferente.

O prefeito de Recife, João Campos, ao anunciar seu secretariado, destacou com pompa a paridade de gênero. Ótimo, contudo, é uma paridade de gênero branca, burguesa e elitista. Não existem negros/as no secretariado do PSB e não existem políticas públicas para enfrentar o racismo estrutural na governança de João Campos (representatividade deve ser pensada na forma e no conteúdo). Nesse sentido, a dinâmica estrutural racista do capitalismo brasileiro é reforçada com as escolhas orçamentárias da prefeitura.

O prefeito do Recife, João Campos (PSB). Foto: Marcos Pastich/PCR

No programa Roda Viva, da TV Cultura, o jurista Silvio de Almeida falou algo óbvio, mas sempre necessário de ser repetido: não é possível ser antirracista defendendo políticas de austeridade – isto é, políticas neoliberais de desmonte e precariedade permanente dos serviços e políticas públicas. Se não é possível ser antirracista defendendo um programa neoliberal, todos os gestores do neoliberalismo são peças, engrenagens da máquina racista – um moinho de gastar gente.

Pois bem, se a tragédia não é natural nos efeitos da chuva, a própria chuva atípica, com recordes de volume de água, também não é natural. É consequência direta das mudanças climáticas. Também é moda falar das mudanças climáticas e da necessidade urgente de transformações na relação ser humano/natureza. Menos comum, contudo, é citar claramente o responsável por essas mudanças climáticas e degradação das condições de vida humana na terra – o capitalismo.

O capitalismo é um sistema econômico que funciona buscando o lucro. Se for lucrativo destruir florestas, poluir rios, degradar o solo, encher a comida de veneno, matar milhões de espécies e tudo mais que você possa imaginar, isso será feito. O capitalismo não tem ética, valores humanistas ou racionalidade. Se alguma racionalidade existe, como limite legal para jornada de trabalho e alguma legislação ambiental protetiva, isso é fruto da luta popular, da mobilização dos explorados e oprimidos – como os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais de pescadores/marisqueiras.

Dito isso, segundo a ONU, Recife é a cidade brasileira mais vulnerável às mudanças climáticas. Não fazer nada significa, na prática, dar boas-vindas à morte. É preciso enfrentar as mudanças climáticas, combatendo a irracionalidade destrutiva do capitalismo, e, ao mesmo tempo, buscar um planejamento de políticas públicas para no curto e médio prazo, reduzir os efeitos dos fenômenos extremos – como as chuvas de grande volume.

Quando nada é feito, quando as pessoas que moram em áreas de risco continuam lá sem qualquer perspectiva de uma política adequada de moradia popular, o que temos é quase um homicídio culposo. Na linguagem jurídica, homicídio doloso é aquele sem intenção de matar. Um governante que negligencia as mudanças climáticas e que com seu projeto governamental piora o quadro, ajudou a matar pessoas – ainda que, individualmente, não seja possível dizer que ele é um homicida. Matar e deixar morrer, embora eticamente diferentes, no final tem o mesmo resultado: pessoas mortas.

Novamente, e correndo o risco de sermos repetitivos, as pessoas mais afetadas pelas mudanças climáticas tem classe, cor e gênero. No plano global, vão ser os países de capitalismo dependente (ou, como chamados na televisão, os “países em desenvolvimento”) e em cada país, o povo trabalhador, os mais pobres. E no Brasil pobreza tem cor – e a mulher negra, em particular, é a síntese da pobreza e exploração em nosso país.

A tragédia de Pernambuco precisa ser um catalisador de uma mudança profunda de rumos no nosso estado e no Brasil. Esse é o momento de máxima solidariedade e mobilização para ajudar as vítimas e, nesse processo, avançar na construção de uma agenda popular, radical e anticapitalista para redesenhar Recife, Pernambuco e todo Brasil. As vítimas sempre têm cor, classe e gênero. Nada, absolutamente nada, é natural ou puramente técnico. É a política que define tudo. E, nesse ponto, a coisa é um pouco binária: ou política emancipatória e popular ou uma política de gestão do capitalismo em sua fase neoliberal e suas desigualdades estruturais de classe, raça e gênero. Não tem meio termo, duas conversas.

É o momento de se organizar para desorganizar a máquina da morte e suas engrenagens.

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