Artigo

A ciência, a política e o outro

Nunca tivemos tantas oportunidades para debater ciência. Evitemos embarcar nos novos fetiches acadêmicos e de influencers sociais

A vacina Sputnik V. Foto: Pavel Korolyov/AFP
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Você já deve ter reparado que temos uma tendência em achar que quem pensa e se comporta diferente da gente foi manipulado ou não dispõe das competências críticas e intelectuais de que nós. Esse tipo de padrão fica mais evidente se aplicado à política, especialmente ao voto. Na comunicação não é diferente. Tendemos sempre a achar que só “o outro” é influenciado por mensagens e conteúdos nocivos, socialmente indesejáveis e negativos. Nunca nós, os críticos, lúcidos e resistentes à má influência. É o que chamamos nas teorias da comunicação de efeito de terceira pessoa.

Um quantidade substantiva de evidências científicas demonstra que esse é um fenômeno humano universal e não respeita cor, credo, classe social, renda, escolaridade. Todo mundo julga o outro, o diferente, como vulnerável em relação a si. Pensem nas tais fake news e a eleição de Jair Bolsonaro. Quantos creditam a vitória do atual presidente à uma máquina sórdida e eficiente de mensagens falsas, mentirosas, apócrifas e descontextualizadas? Muitos. E qual a premissa? O outro. O eleitor de Jair Bolsonaro foi enganado, manipulado, induzido. É até prazeroso ceder a essa hipótese porque, em primeiro lugar, ela nos coloca numa posição de superioridade e, em segundo, cria a impressão de que o eleitor, se manipulado para um lado, pode ser manipulado para o outro. É tentador. Uma pena é que que seja falso.

O que as ciências cognitivas – incluindo as aplicadas à opinião pública – demonstram é que lidamos com informação e verdade menos por meio de nossas competências e habilidades intelectuais e hermenêuticas do que por nossos sistemas de crenças e convicções, inclusive aquelas compartilhadas com nossas tribos.

É tentador pensar que eleitores são induzidos ao erro ou à manipulação, mas a verdade é que só aderimos, retemos e repassamos adiante mensagens, mesmo que falsas, caso elas se encaixarem às nossas convicções e aos nossos sistemas de crenças. É o que chamamos de viés de confirmação. O que temos não é um eleitorado manipulado e induzido, mas um eleitorado muito parecido com Jair Bolsonaro. Há, como em qualquer tipo de relação político-eleitoral, um encaixe normativo entre os dois lados.

O mesmo vale para a maneira como lidamos com a ciência. A confiança nas evidências científicas variam conforme as conveniências de nossas crenças e consensos tribais. Os pesquisadores Emily Pechar, Thomas Bernauer e Frederick Mayer desenvolveram um estudo com resultados bastante consistentes a respeito. Invalidando a tese de que a confiança na ciência teria relação com posições político-ideológicas, o trio de autores demonstra que essas posições variam de acordo com o modo como os indivíduos se posicionam face a governos e corporações. Pode ser de esquerda ou direita. Ou seja, um ambientalista progressista pode usar as evidências científicas para sustentar o argumento da antropogenia nas mudanças climáticas, mas refutar o consenso científico da mesma comunidade sobre alimentos geneticamente modificados não prejudicarem a saúde ou sobre o efeito placebo da homeopatia.

Igualmente, alguém mais à direita aderirá com maior facilidade ao consenso científico sobre os alimentos geneticamente modificados, mas refutará completamente a ideia de que a ação humana está por trás das mudanças climáticas ou mesmo que as mudanças climáticas realmente existem. E, como justificativa, sacarão sempre algum argumento conspiracionista de que governos ou corporações estão escondendo algo de nós – não é assim com quem acredita até hoje que frangos são criados à base de hormônios? Do mesmo modo, a extrema-direita bolsonarista refuta o consenso científico sobre a “inocuidade nociva” do uso da hidroxicloroquina para tratar a Covid-19 e a esquerda mais radical só confia na vacina chinesa, desconfia da vacina de Oxford e acredita, num embalo parecido com a do presidente da República, que a técnica de RNA empregada neste imunizante pode lhes causar alguma mutação genética. Eis o jacaré.

E esse parece o ponto fundamental do nosso embróglio político, social e científico: a nova hegemonia da extrema-direita pode nos dar a falsa impressão de que os danos do negacionismo se devem tão e somente a uma propriedade dessas mentalidades à direita. Mas isso, infelizmente, não é verdade. O caso da Anvisa/Sputnik V demonstra que as crenças ideológicas falam mais alto do que as conclusões científicas oriundas de autoridades epistêmicas, ou seja, de pessoas treinadas e capacitadas para lidar com um campo específico do saber. A ciência é muito mais marginal do que parece, no fim das contas. O modo como lidamos com informação e saber tendem a ser muito mais dogmáticas, religiosas, sustentadas por crenças e valores tribais do que com base na ciência e na verdade.

Escrevo esta coluna porque penso que temos uma oportunidade de ouro para falamos da ciência e das contribuições inestimáveis que o conhecimento científico pode nos dar. E quando a ciência dá lugar ao negacionismo institucionalizado, como atualmente no Brasil, temos coisas como mais de 400 mil mortes – excluindo as prováveis as subnotificações – que poderiam ter sido evitadas. Nunca tivemos tantas oportunidades para falar sobre verdade e ciência. Evitemos embarcar nos novos fetiches acadêmicos e de influencers sociais.

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