Artigo
A casa-grande em pânico
O patronato brasileiro reluta em aceitar os mais básicos direitos de suas empregadas domésticas


No início de junho de 2020, no Recife, uma dona de casa mandou a empregada doméstica passear com o cachorro na rua. O filho pequeno da moça ficou no apartamento da patroa, mas esta não tomou conta do pequeno. Teria pensado que não tinha nada a ver com aquele menino? O fato é que o garoto entrou no elevador e foi do quinto ao nono andar, onde se debruçou numa janela, caiu e morreu. Imaginem o desespero da mãe ao voltar. Imaginem a dor, desse tipo de dor que não tem cura. Imaginem também que a mãe deve ter se sentido culpadíssima pela tragédia, cuja responsável não tinha sido ela, mas sua patroa. Que, talvez, tenha racionalizado a situação, pensando que a criança não era problema dela.
Não conseguiria escrever esta página se não começasse com a tragédia acima. Não porque ela aconteça todos os dias, espero que não, mas por ser representativa do lugar que as empregadas domésticas, sobretudo as que moram no local de trabalho, ocupam diante dos patrões. Até 2013, estavam continuamente à disposição deles, sem nenhuma perspectiva de regulamentação de seu tempo de trabalho ou de padronização legal dos salários. Uma continuação soft da vida de seus antepassados escravizados.
Na minha infância, duas empregadas domésticas moravam e trabalhavam em casa. Cada uma tinha seu quarto – uma delas era casada. Faziam todo o serviço da casa e só iam dormir depois de servir o jantar e deixar a cozinha limpa. Imagino que muitos leitores desta coluna talvez também tenham tido essa experiência na infância. Só posso dizer, para amenizar a situação, que elas tinham direito a descanso. Pelo menos no domingo, ou seria a partir do sábado à tarde? Não me lembro.
Eu gostava muito da mais jovem, a Teresa. Ia atrás dela, tagarelando, talvez atrapalhando seu trabalho. Se foi assim, Teresa nunca reclamou da minha companhia. Talvez gostasse do meu interesse por ela. Me ensinava canções da sua própria infância, algumas das quais ainda guardo na memória.
Até que décadas depois, em 2013, no primeiro governo de Dilma Rousseff, o Congresso votou pela promulgação da chamada PEC das Domésticas. A nova legislação tornou obrigatória uma série de medidas óbvias, como garantias trabalhistas para as empregadas domésticas, salário maternidade para as que tenham filhos, estipulação de horários de trabalho iguais aos de outras categorias de trabalhadores, auxílio-doença, auxílio em caso de acidentes de trabalho e, o mais importante, jornada de oito horas diárias, 44 horas semanais. O trabalho no sábado seria de meio expediente.
Em 2015, uma extensão da lei criou a obrigatoriedade, para os patrões, de recolhimento do FGTS, do seguro-desemprego e do pagamento de horas extras, do adicional pelo eventual trabalho noturno e pelas viagens que fizessem com os donos da casa – não por lazer, mas para seguir trabalhando e proporcionar maior conforto e lazer aos patrões.
Ainda inconformadas com a definição das jornadas de trabalho, as patroas deveriam receber um tutorial de como operar o fogão
Justiça, afinal, para essa categoria majoritariamente feminina, em que muitas mulheres migram para grandes centros urbanos fugindo da miséria ou da seca. Sem estudo ou formação profissional, alistam-se entre as chamadas funcionárias do lar. Mas é claro que o patronato brasileiro não gostou dessa iniciativa “comunista”, vinda de um governo do PT (por ignorância ou má-fé, muita gente chama de “comunistas” todas as pequenas iniciativas progressistas tomadas pelas gestões petistas).
Entre as reações mais bizarras, destaco a de Danuza Leão, que revela didaticamente a cegueira de classe da elite brasileira. Ela escreveu em sua coluna – não me lembro se na Folha ou em O Globo – que achava justa a regulamentação dos direitos trabalhistas das empregadas domésticas – os quais estabeleciam, entre outras coisas, o limite das horas de trabalho diárias, além da folga dominical.
Danuza protestou, com muita elegância, dizendo que havia uma injustiça contida nessa reforma. Sim, as empregadas domésticas tinham direito a um limite em sua jornada diária. No entanto, um casal de amigos dela, já idosos, conservavam o hábito de tomar chá todas as noites antes de dormir. O argumento de Danuza, por cegueira de classe ou má-fé, foi o seguinte: se a empregada tinha direito de encerrar sua jornada em horário regulado pela CLT, seus patrões, por outro lado, também tinham seus direitos. Entre eles, o de tomar uma xícara de chá antes de dormir. Ou seja, o horário de descanso da moça deveria ser condicionado pelo horário de dormir de seus patrões.
Na época eu tinha perdido minha coluna no Estadão, então não pude publicar a réplica que me veio, prontinha, à cabeça. Aproveito esta página para divulgar minha ironia agora, dez anos depois.
Sim, Danuza tem razão. Seus patrões têm direito à sua xícara de chá. Proponho, para resolver o conflito, que todos os patrões possam passar por uma fase de adaptação antes da emancipação legal das empregadas. Para isso, as domésticas devem lhes ensinar: 1. Onde fica a cozinha. 2. Qual daqueles móveis esquisitos é o fogão. 3. Como acender o fogo. 4. Qual a relação entre o fogo aceso e a chaleira de água. 5. Onde ficam as xícaras de chá e, finalmente, 6. Qual relação deve ser estabelecida entre a água fervendo, os saquinhos de chá e as xícaras.
A partir desse breve curso introdutório, a empregada teria conquistado o direito de encerrar sua jornada no horário estipulado por lei.
Que alívio, para mim, publicar um texto que ficou engasgado tanto tempo. •
Publicado na edição n° 1270 de CartaCapital, em 02 de agosto de 2023.
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