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A babá: uma questão da branquitude

A figura da babá para as histórias das famílias brancas esconde outros recortes, recobre com o véu da mistura harmoniosa aquilo que foi violência e subalternização

A babá: uma questão da branquitude
A babá: uma questão da branquitude
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Quando o assunto é babá no Brasil, é muito frequente escutarmos entre pessoas brancas suas histórias de vínculos primários e saudosos — “ela foi como uma mãe”. Quem são essas mulheres que cuidaram da maior parte das pessoas brancas da classe média do país? Onde elas moraram? Onde dormiam? Onde estão os seus filhos e filhas?

Ora, quando a centralidade da questão da babá está na sua relação com as heranças para as pessoas que compunham a casa grande, deixamos, mais uma vez, essas perguntas sem resposta. Curiosamente, algumas pessoas brancas tendem a colocar em primeiro plano a sua conexão com a cultura negra por meio da presença da babá na formação da família no interior da casa grande. A questão da babá ganha relevo para a branquitude especialmente quando ela incide sobre a formação da subjetividade das pessoas brancas. Por exemplo, é nesse contexto que Anne McClintock (2021) propõe uma releitura da trama edípica evocada por Freud, cuja relação com a sua própria babá foi eclipsada dos textos oficiais para figurar apenas em cartas. Nas suas palavras, “na teoria de Édipo (…), a duplicação ‘impublicável’ da figura da mãe pela classe é ocultada pela divisão e atribuição, em separado, ao pai e à mãe de ambos os papéis (…) que Freud observa na babá” (p.145).

Não é surpreendente que a historiadora norte-americana e branca não dê ênfase à problemática racial nesse contexto — sua crítica em relação à dimensão de classe e gênero excluídas da trama edípica perpetua uma universalidade abstrata, em especial da própria noção de mulher, que se ancora na centralidade da perspectiva da branquitude. A questão da babá só pode entrar como uma variável no Édipo de pessoas que foram cuidadas por elas — pessoas brancas. E as mulheres negras, maioria no Brasil, que chefiavam as suas famílias e, ao mesmo tempo, ocupavam os lugares sociais de subalternização que as reduziam a cuidar dos filhos e filhas das pessoas brancas? As suas histórias não poderiam contribuir para repensar as teorias psicanalíticas? Elas não compõem a história do nosso próprio país? Ao focarmos a questão da babá no que ela pode ter contribuído para a família nuclear burguesa, seja participando de alguma forma na trama edípica, seja nas lembranças das pessoas brancas, nós apagamos o que significa o lugar da babá para a mulher negra.

Nessa direção, vale lembrar que, embora Lélia Gonzalez (2020) afirmasse a importância das mães pretas na transmissão da cultura negra, mais especificamente, na constituição da linguagem marcada por ela, o Pretoguês, suas considerações apontam também para outra questão: a exploração e subalternização das mulheres negras na sociedade brasileira. Suas palavras são certeiras: “Quanto à mulher negra, sua falta de perspectiva quanto à possibilidade de novas alternativas faz com que se volte para a prestação de serviços domésticos, o que a coloca numa situação de sujeição, de dependência das famílias de classe média branca” (p.42).

A ênfase de Lélia Gonzalez na disseminação do Pretuguês era menos para destacar a babá pela perspectiva da branquitude e mais para a afirmação da sua importância social na construção da cultura negra. Diferentemente de Gilberto Freyre, que já tinha, de algum modo, sublinhado o papel da ama de leite e da babá na transmissão da cultura negra, o ponto principal que Lélia Gonzalez nos lega é a denúncia da exploração da mulher negra.

Apesar dessa ênfase, a discussão evocada por Lélia Gonzalez é frequentemente tomada como uma espécie de chancela para pessoas brancas focarem na sua relação com a babá, reificando o lugar da mulher negra como aquela cujo principal propósito é servir à branquitude, sem que as suas histórias sejam pensadas por elas mesmas. Nosso ponto é que a centralidade da branquitude permanece intacta quando a discussão sobre a babá está na sua prestação de serviço para as pessoas brancas. O efeito limitado da consolidação do Pretoguês, devido às outras instituições coloniais do Estado que concorrem para o silenciamento da cultura negra, não pode eclipsar que a maioria das mulheres sofre pela condição imposta de domésticas (Gonzales, 2020, p.44). O argumento de uma herança deixada pelas mulheres negras na branquitude se apoia em uma espécie de mistura cultural sem levar em conta as relações de poder que se perpetuam na própria cultura colonialista. Além de apontar a assimetria dessa relação, é preciso lembrar que a principal consequência da subalternização não é apenas a exploração da mão de obra dessas mulheres (veja o tempo que demoramos para ter a PEC das domésticas), mas o fato de que elas perdem o direito de cuidarem dos próprios filhos e filhas, enquanto liberam as pessoas brancas para viverem o seu trabalho por meio do qual acumulam mais capital.

Se a trama edípica deve incluir a problemática da babá, ela também deve incluir os efeitos da ausência dessas mulheres que, muitas vezes, sustentam sozinhas suas famílias. A questão que se impõe é: qual o efeito subjetivo dessa dinâmica para as crianças cujas mães estavam cuidando de outras crianças? Não são poucas as histórias de violência que envolvem a falta de uma rede de cuidado segura para as crianças das mulheres cujo trabalho consiste justamente em cuidar de outras crianças. Sem a possibilidade de cuidado em sua própria família, com poucas creches públicas em horário integral, os filhos das babás acabam, muitas vezes, circulando de casa em casa, sem um cuidado fixo. Muitas dessas babás são mães obrigadas a levarem os seus filhos para o trabalho sem qualquer margem de segurança, como Mirtes, mãe do menino Miguel, morto em Recife, em 2020, pela ação de descaso da prática de sua patroa cujo nome remete diretamente ao colonialismo, Sari Corte Real.

A figura da babá e sua centralidade para as histórias das famílias brancas esconde outras histórias, recobre com o véu da mistura harmoniosa aquilo que foi violência e subalternização, trata um problema de saúde pública como uma questão edípica centrada na família nuclear burguesa. A babá é uma questão para a branquitude na medida em que é preciso enfrentar a responsabilidade da casa grande pela tentativa de apagamento da história, dos cuidados e, em última instância, das próprias famílias chefiadas pelas mulheres negras — a herança transmitida pelas mães pretas foi às custas de violência, e análises que não se focam nessas violências terminam por repeti-las.

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