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7/10: Israel, refém do trauma, catalisa a espiral de violência no Oriente Médio

O aniversário de um ano do massacre é também o aniversário de um ano da brutal, desproporcional e desumana resposta – e o fato é que esses dois dramas coexistem

7/10: Israel, refém do trauma, catalisa a espiral de violência no Oriente Médio
7/10: Israel, refém do trauma, catalisa a espiral de violência no Oriente Médio
Soldados israelenses supervisionam os escombros no território libanês, a nova frente aberta de batalha – Imagem: Ibrahim Amro/AFP
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Na manhã de 7 de outubro de 2023, membros das Brigadas Qassam, pertencente ao Hamas, e outros quatro grupos armados organizados palestinos lançaram um ataque sem precedentes contra Israel. Passado um ano, a resposta israelense, inicialmente focada na Faixa de Gaza, de onde partiram essas ações, passou a envolver também operações militares na Síria, no Líbano, no Iraque, no Iêmen e no Irã, expandido indefinidamente o que poderia ter sido um ato de legítima defesa imediata nos termos da Carta das Nações Unidas, e exacerbando, no tempo e na forma, os parâmetro de proporcionalidade e humanidade previstos nas leis da guerra.

Ao relembrar nesta segunda-feira (7) o primeiro aniversário do mais letal ataque já sofrido em sua história, Israel manifesta ao mundo sua sensação de ressentimento, incompreensão, desamparo, isolamento e vulnerabilidade diante do que percebe ser uma ameaça existencial coordenada, liderada e municiada por um governo iraniano abertamente hostil, que recorre a grupos armados organizados como o Hamas, o Hezbollah e os houtis, para fustigar o território israelense enquanto acena, no limite, com o risco de um conflito potencialmente nuclear.

Esse é o ponto de vista de grande parte da população israelense, sobretudo daqueles que seguem hipnotizados pelo drama ininterrupto dos 255 sequestrados, dos quais, passado um ano, 136 ainda seguem abduzidos, sendo 35 deles comprovadamente cadáveres não retornados agora. A sensação onipresente de vulnerabilidade diante de uma ameaça existencial é baseada num misto de traumas legítimos e de paranoias que vêm sendo exploradas politicamente por um governo radical de extrema direita cujo líder, o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, ocupa ao mesmo tempo a paradoxal posição de principal responsável pelo fracasso que expôs os cidadãos do país ao massacre do 7 de outubro e de comandante supremo de uma resposta militar sem limites.

A desconexão entre a expectativa dos israelenses e a maior parte da opinião pública ocidental alimenta certo ressentimento

Os traumas legítimos dos israelenses têm raízes antigas na cultura de um povo judeu que, muitas vezes ao longo de sua história, foi vítima de campanhas massivas de difamação e de perseguição em todo o mundo, tendo como paroxismo o Holocausto, na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A criação do Estado de Israel, em 1948, foi uma resposta a essa perseguição, embora as raízes dessa demanda sionista sejam muito anteriores à ascensão do nazismo.

O massacre de 7 de outubro se encaixa à perfeição como um novo elo dessa longa cadeia histórica de traumas legítimos que são ressuscitados e repassados de geração em geração, como uma herança e um estigma dos quais não se pode escapar, pois seriam inerentes não apenas à condição israelense, mas também à própria condição judaica.

É a partir desse ponto de partida calcado no trauma da sociedade israelense que Netanyahu desenrola o novelo interminável de ações militares que se estendem para muito além da resposta imediata de autodefesa, assumindo a forma de uma “doutrina Bush” reeditada, segundo a qual uma potência que se sinta ameaçada por um país ou por um grupo percebido como hostil tem o direito de recorrer a uma inventada “autodefesa preventiva”, ainda que a agressão projetada não tenha se confirmado real. Imputar ao outro a intenção de extermínio é, afinal, o ponto de partida para toda conversa que se ouve sobre essa questão.

É certo que o Irã tem a capacidade e a intenção de agredir Israel, porque seus líderes manifestam essa ameaça sempre que têm a oportunidade. Mas não existe nada no Capítulo 7 da Carta da ONU – item que trata do uso legal da força – que permita que um Estado-membro ataque outro com base apenas em declarações e projeções. Netanyahu sempre poderá argumentar que os mísseis lançados por Teerã são a verdade manifesta da intenção de exterminar Israel, mas o lado contrário argumentará, como tem feito no Conselho de Segurança, que apenas exerce seu direito de defesa contra ataques anteriores ordenados por Israel contra suas instalações diplomáticas na Síria; mesmo quando lança seus mísseis sobre Israel por mera retaliação a um ataque anterior, dirigido contra o Hezbollah no Líbano.

No aniversário de um ano do 7 de outubro, o mundo está mais ocupado em discutir essas intermináveis voltas da espiral de violência no Oriente Médio do que em se solidarizar com as vítimas israelenses do massacre. E é precisamente essa desconexão entre a expectativa dos israelenses traumatizados e a maior parte da opinião pública ocidental que alimenta um ressentimento e uma sensação de incompreensão, mesmo de parte daqueles israelenses que odeiam Netanyahu, e que vêm saindo às ruas em marchas massivas e constantes contra o governo do primeiro-ministro e suas ações obsessivamente belicistas.   

O massacre de 7 de outubro ainda é uma memória viva demais para suas vítimas. Em junho, estive, como jornalista, entrevistando moradores de um dos primeiros kibutzim atacados pelo Hamas um ano atrás. Em Nir Oz, perto da fronteira com a Faixa de Gaza, viviam aproximadamente 400 pessoas, das quais 52 foram mortas e 77 sequestradas, incluindo uma criança de 4 anos e um bebê que tinha apenas 9 meses de idade.

O país inteiro está tomado por cartazes com fotos dessas pessoas. Seus nomes são mencionados todos os dias na televisão. Marchas multitudinárias ocorrem toda semana em Tel Aviv. Todos os corredores do aeroporto Ben Gurion estão repletos com menções aos sequestrados. O laço amarelo tornou-se um símbolo onipresente de dor e de solidariedade com os reféns levados pelo Hamas. Para quem está dentro de Israel, não há drama maior que o dos civis sequestrados. Você pergunta a eles sobre os mais de 40 mil mortos na Faixa de Gaza e a resposta mais comum é: “isso é terrível, não devia estar acontecendo, sinto muito pelos palestinos, mas por que ninguém fala do drama que estou vivendo e da dor que estou sentindo?”

Como repórter, o que fazemos é ver coisas, formular perguntas e publicar respostas e constatações. O sentimento dos israelenses precisa ser retratado como tal no primeiro aniversário do 7 de outubro. Acontece que o aniversário de um ano do massacre de 7 de outubro é também o aniversário de um ano da brutal, desproporcional e desumana resposta dada por Israel na Faixa de Gaza, e o fato é que esses dois dramas coexistem, assim como a celebração pela criação do Estado de Israel, em 1948, coexiste com o Nakba, o dia do maior desastre da história palestina.

Não se trata de diluir a culpa dos culpados em falsas simetrias e equilíbrios fabricados – os números de mortos são discrepantes, assim como a extensão dos danos à infraestrutura física. O estrago causado pelas ações de Israel é muito maior, dada sua evidente superioridade militar quando comparada à dos atores não-estatais da região. Mas isso não apaga, não reduz e não nega o sofrimento causado pelo 7 de outubro.

Israel está sendo julgado, enquanto Estado, pelo crime de genocídio na Faixa de Gaza. A ação foi movida originalmente pela África do Sul, e tem respaldo de diversos países, incluindo o Brasil. Genocídio é um gravíssimo crime de guerra caracterizado pela intenção de eliminar total ou parcialmente um grupo humano. A acusação é de que Israel falseia o argumento de autodefesa para, na verdade, inviabilizar a própria existência palestina, liberado os territórios hoje ocupados para uma colonização definitiva.

A defesa jurídica do Estado israelense evidentemente nega a acusação e contesta sobretudo a ideia de “intenção”. Não sem uma dose de cinismo, comandantes militares e líderes políticos israelenses tratam as milhares de mortes de civis palestinos como consequência lamentável, porém inevitável, do uso deliberado de “escudos humanos” por parte de combatentes palestinos, que se mesclam propositadamente com a população civil, aumentando o risco do que Israel apresenta como “danos colaterais”. Essa dinâmica seria, na visão apresentada pela defesa israelense, suficiente para afastar a ideia de intencionalidade. É como se dissessem: “pode até acontecer que inviabilizemos um futuro Estado palestino, mas isso é reflexo de uma ação militar legítima de autodefesa; não de um plano deliberado de extermínio de uma população.”

Essa resposta ignora o fato de que o conceito de intencionalidade aplicado ao genocídio não diz respeito apenas à ideia de querer exterminar deliberadamente um determinado grupo humano, mas também de ter a consciência de que suas ações podem, no limite, levar à extinção total ou parcial desse grupo. Esse é, portanto, um conceito muito ligado a escala, e Israel tem dificuldade em demonstrar que a escala de sua reação ao 7 de outubro é proporcional, como determina a lei.

Mas esse não é o único problema que os israelenses enfrentam na Justiça internacional, porque Netanyahu – ele, pessoalmente; já não mais o Estado de Israel – é alvo de um pedido de detenção apresentado pelo procurador do Tribunal Penal Internacional, com base na alegação de que ele comete crimes de guerra em Gaza. Além de Netanyahu, também o ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, está na mesma situação.

Israel não é signatário do Estatuto de Roma, que estabelece as bases jurídicas do funcionamento do Tribunal Penal Internacional, mas isso não faz nenhuma diferença porque esse mesmo Estatuto prevê a possibilidade de condenação de qualquer um cujos crimes tenham sido cometidos no território de um país signatário. A Palestina declarou aceitar a jurisdição do TPI em junho de 2014 e aderiu formalmente em abril de 2015,o que basta para que o Tribunal alcance os crimes atribuído a Netanyahu, cuja eventual ordem de prisão poderia ser cumprida caso o hoje premiê viesse a pisar no território de qualquer um dos 124 países do mundo que se sujeitam a essa instância.

É impossível manter a efeméride do primeiro aniversário do 7 de outubro circunscrita apenas ao drama das vítimas israelenses, porque esse drama engendra uma porção de outros dramas causados por Israel a civis palestinos – e, mais recentemente libaneses, sírios, e iemenitas também – que são tão inocentes quanto as vítimas do Hamas, de um ano atrás. Reconhecer a coexistência dessas tragédias é condição indispensável para refletir sobre a importância dessa data.

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