Política

Judiciário se move para frear a inconsequência de Bolsonaro

Cada vez mais isolado no cenário político, o presidente coleciona derrotas no STF em meio à crise do coronavírus

O ministro Alexandre de Moraes. Foto: Nelson Jr./SCO/STF
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Em recente pronunciamento à nação, Jair Bolsonaro voltou a escandalizar o mundo com reincidente postura de minimizar a pandemia de coronavírus, propondo o fim da quarentena. A irresponsável conduta despertou a ira de governadores que haviam determinado medidas de isolamento social. Até mesmo antigos aliados, como Ronaldo Caiado, decidiram romper com o ex-capitão, sempre a ignorar os alertas de especialistas da área da Saúde. A reação não se restringe, porém, à seara científica ou política. No Judiciário, o presidente também coleciona derrotas.

A mais recente ocorreu na tarde desta quinta-feira 26, quando o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu os efeitos de uma medida provisória que restringia o acesso a informações públicas enquanto perdurasse o estado de calamidade, decretado em decorrência da pandemia. A ação foi movida pela Ordem dos Advogados do Brasil.

Na avaliação de Felipe Santa Cruz, presidente da entidade, a decisão abre caminho para a divulgação do resultado dos exames de Bolsonaro, para saber se ele contraiu ou não a Covid-19. “É uma informação privada, mas de interesse público”, disse ao jornal O Globo. Vale lembrar que 23 integrantes da caravana de Bolsonaro aos EUA testaram positivo para o novo vírus.

Na terça-feira 24, Bolsonaro havia sofrido outro revés na Corte. O ministro Marco Aurélio Mello estabeleceu, em decisão liminar, que governadores e prefeitos têm autonomia para determinar restrições à locomoção das pessoas em Estados e municípios. A decisão atendeu parcialmente a uma ação movida pelo PDT, a questionar outra medida provisória editada pelo presidente, para quem somente as agências reguladoras federais poderiam editar restrições à locomoção.

A MP visava anular decisões dos governos do Rio de Janeiro, Paraná e Maranhão, que estabeleceram a suspensão do transporte interestadual de passageiros para conter a propagação do novo coronavírus. Da mesma forma, era uma pirracenta resposta de Bolsonaro aos governadores de São Paulo, João Doria (PSDB), e do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), que adotaram medidas de isolamento e quarentena em seus estados.

Em resposta a um pedido liminar protocolado por governadores do Nordeste, Marco Aurélio decidiu suspender os cortes no programa Bolsa Família durante a pandemia do coronavírus. Em março, o Ministério da Cidadania cortou mais de 158 mil benefícios, 61% deles em estados nordestinos.

A decisão também ordena à União que explique a razão de os cortes estarem concentrados na região, governada por partidos de oposição ao presidente. Além disso, segundo recente reportagem de O Estado de S.Paulo, o governo Bolsonaro priorizou o Sul e o Sudeste na liberação de novos benefícios em detrimento do Nordeste, que concentra 36% das famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza na fila do Bolsa Família.

No fim de janeiro, CartaCapital divulgou com exclusividade um levantamento encomendado pelo governo de Pernambuco, a indicar a existência de 3,57 milhões de famílias brasileiras pobres ou miseráveis e que estavam fora do programa. A despeito disso, o governo federal insistia que a fila era muito menor, não chegava a 500 mil solicitantes.

Felizmente, o Judiciário resolveu analisar a questão com mais cuidado, e parece empenhado em interditar as ações mais deletérias do ocupante do Palácio do Planalto.

Trabalhadores ao deus-dará

Bolsonaro propôs o fim da quarentena sob o pretexto de preservar a economia e os empregos, mas a realidade é que praticamente todas as ações anunciadas vão na direção de socorrer as empresas, e não de garantir renda para a população. Além do “corona voucher” de 300 reais para os informais (incialmente, o valor era de míseros 200 reais), o presidente chegou a assinar uma medida provisória autorizando os empresários a suspender os contratos de trabalho – e os salários dos empregados – por até quatro meses. Diante da repercussão negativa da desumana proposta, o governo voltou atrás, ao menos em parte. Liberou um corte de 50% nos salários.

“A forma como o governo trata as populações vulneráveis não é muito diferente de como lida com a epidemia em si. Minimiza o problema e faz de conta que não é com ele”, comenta Leda Paulani, professora da Faculdade de Economia e Administração da USP. “Evidentemente, 300 reais é um valor ínfimo para o custo de vida nas grandes cidades, e sequer há um plano claro de como distribuir esses valores, não há protocolo definido”.

Em uma paralisação geral da economia provocada por um fator externo, como é o caso da pandemia de coronavírus, é inevitável haver um esgarçamento das atividades produtivas, com falências e problemas de abastecimento, acrescenta a especialista. “É nessa hora que o Estado precisa ser mais atuante. Se o governo se compromete a pagar parte dos salários, ameniza o impacto social. Trump também minimizava a Covid-19 no início, mas agora anunciou um pacote equivalente a dois PIBs brasileiros. Aqui, o governo oferece uma esmola para os informais e retira a renda dos trabalhadores registrados. Não faz sentido sob qualquer ângulo que quiser analisar”.

Um dia antes de a Organização Mundial da Saúde alertar que os Estados Unidos devem se tornar o novo epicentro da pandemia, após a China e a Europa, o presidente Donald Trump anunciou um investimento de 2 trilhões de dólares para combater o impacto dela na saúde e na economia. É o maior pacote de resgate na histórica norte-americana.

No Reino Unido, o premiê Boris Johnson reconheceu que o Sistema Nacional de Saúde corre sério risco de colapso e determinou, na segunda-feira 23, uma quarentena oficial. Agora, os britânicos só podem sair de casa para atividades essenciais, como comprar alimentos e remédios. Inicialmente agarrado à arriscada estratégia de expor a população ao vírus e proteger apenas os grupos vulneráveis, o primeiro-ministro mudou a postura após um estudo do Imperial College de Londres prever até 500 mil mortes no país, caso não fossem adotadas medidas de restrição à circulação de pessoas. Agora, para preservar os empregos, o governo se dispõe a pagar até 80% dos salários.

Isso mesmo. Enquanto o governo brasileiro pretende liberar os empresários a cortar pela metade o salário de seus funcionários durante a quarentena, o britânico está disposto a bancar 80% dos rendimentos, até o limite mensal de 2,5 mil libras esterlinas por trabalhador, o equivalente a 14,5 mil reais.

No Brasil, com 12 milhões de desempregados e mais de 38,8 milhões de trabalhadores informais, a economista Leda Paulani não descarta a possibilidade de “haver uma convulsão social” com o agravamento da crise. “As pessoas estão ficando sem renda, as prateleiras dos mercados devem esvaziar com a queda das cadeias produtivas, teremos milhões de brasileiros ao deus-dará”, lamenta. “Para piorar, temos um nível de desigualdade brutal, e parcela expressiva da elite tem visão predatória, não se preocupa com o povo”.

Atualização: Na noite da quinta-feira 27, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou um auxílio emergencial de 600 reais, por três meses, destinados aos trabalhadores autônomos, informais e sem renda fixa durante a crise provocada pela pandemia de coronavírus. A matéria segue para análise do Senado. O valor, três vezes superior ao anunciado pelo Executivo no início da crise, é resultado de intensa negociação travada por parlamentares com o governo federal.

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