Diversidade

Historicamente preconceituoso, o esporte já pode ser gay

Do futebol americano ao curling, não há modalidade que não esteja representada. Cada vez mais, o esporte quer ser alegre

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Ain’t fucking going, praguejou Megan Rapinoe, capitã e estrela maior da seleção feminina de futebol dos Estados Unidos, ao ser avisada de que Donald Trump planejava receber as jogadoras na Casa Branca e, humm, prestar homenagem ao time que acabava de ganhar o título mundial na França. O desabusado Não vou nem f… da artilheira serviu de senha à insurreição de outras campeãs, conscientes de que tais eventos acabam servindo de tributo, isto sim, ao rombudo ego do próprio presidente. Rapinoe tem razões pessoais para a recusa: abertamente homossexual, ela não se sentiria bem-vinda na sede do califado homofóbico do sultão Trump.

O assunto parece ter sido desconversado, mas, enquanto a estrela desfilava em glória, ao lado das companheiras de título, na tradicional parada dos vencedores, na 5ª Avenida, em Nova York, mãos vingativas vandalizavam os posters de Megan Rapinoe no metrô da cidade. Seria como xingar Romário na volta da Copa de 1994 ou Ronaldo em 2002. Ao contrário do que aconteceria aqui, a polícia do prefeito Bill De Blasio saiu à caça dos detratores.

No caso da craque americana, outro elemento se agrega ao destemor da sexualidade para produzir uma mistura tóxica: o patriotismo rasteiro. Ser gay no esporte e não esconder, até pode; mas o atleta tem de se mostrar um devotado soldado da pátria. Não é propriamente o perfil de Rapinoe. A moça é do tipo que se recusa a pousar a mão no peito, os olhos cerrados, em contrição guerreira, quando o Stars and Stripes é tocado.

Megan Rapinoe transformou sua opção sexual numa bandeira na espinhosa batalha contra a intolerância. “Avante, gays”, conclamou ao fim de uma das partidas vitoriosas. “Não dá para ganhar um campeonato sem gays no seu time. Não dá, nunca deu antes – isso é científico.” Caíram em cima, acusando-a de preconceito às avessas, mas, ao menos no que refere puramente à estatística, a craque americana tem razão. Exemplo: nas duas equipes que disputaram a final da Copa do Mundo em Lyon, deu empate. Cinco jogadoras declaradamente lésbicas entre as holandesas, cinco no Team US. Duas delas, a goleira Ashlyn Harris e a defensora Ali Krieger, parceiras na equipe campeã, anunciaram seu compromisso nupcial no início do ano. 

A capitã da Seleção dos EUA, campeã do mundo, mandou Trump procurar a turma dele

O soccer das meninas comporta hoje um desassombro público diante da sexualidade que ainda é exceção em muitos esportes, mas traz consigo um injusto paradoxo: a suposição, fundamentalmente preconceituosa, de que, para triunfar numa modalidade de entrechoques e caneladas, você tem de envergar uma atitude de virilidade. O que prometia ser o exercício de liberdade pessoal cai de novo, por obra dos intrometidos, na moldura dos estereótipos. Intrometidos estes que chegaram a contabilizar o número de homossexuais na recente Copa do Mundo. Deu 37 atletas. Nas entrelinhas, o sussurro malicioso: ah, esporte de muita macheza.

A contabilidade das 37 incluiu três brasileiras: a guarda-metas Bárbara, a atacante Cristiane e, sim, ela, a cracaça Marta, seis vezes a melhor do mundo pela Fifa. Enquanto Bárbara e Cristiane se esquivavam dos inconvenientes melindrosos dos holofotes, resguardando seus amores para o Instagram, Marta relutou ferozmente em comentar o assunto e em devassar a intimidade de seu quarto de dormir. Só muito recentemente se assumiu, também pelo Instagram. Postou foto carinhosa ao lado de Toni Deion Pressley, sua colega de Orlando Pride, e revelou que já a apresentou à família em Maceió.

Bárbara, da seleção feminina, e a companheira

Cristiane, da seleção feminina, e a companheira

Marta, da seleção feminina, e a companheira, colega do Orlando Pride

E os rapazes da bola? Em entrevista recente à coluna da Mônica Bergamo, na Folha, o treinador Renato Gaúcho deu voz ao macho alfa que o domina e sugeriu que o futebol masculino não é o ambiente mais apropriado para gays. Não entrou em detalhes, o que dá a entender que, talvez, vestiários à meia-luz sejam extremamente libidinosos e chuveiros coletivos, um risco à rigidez hétero. De todo modo, a condição gay não entra em campo no futebol dos rapazes – ou, se entra, é daquele jeito dissimulado que os americanos definem como don’t ask, don’t tell (não pergunte, não diga). O silêncio é a outra face do tabu.

Confessar ou não sua preferência sexual deveria ser uma decisão de foro íntimo, nada a ver com a performance esportista – a não ser para aqueles e aquelas, tais como Megan Rapinoe, infatigável ativista dos direitos LGBT, que fazem de sua opção um desafio político contra a discriminação e a violência. O problema é que o esporte é uma vitrine de muita visibilidade e a mídia de escândalo não se cansa de bisbilhotar os atletas pelo buraco da fechadura de suas vidas fora das quadras, das pistas, dos complexos olímpicos.

A Wikipedia lista 427 homossexuais, bissexuais e trans no esporte. Do futebol ao curling

Já foi maior o estardalhaço, é verdade. Declarar-se gay, nos anos 1980 e 1990, era trazer consigo o fantasma da Aids, quando o mal ainda era tido como incurável, além de facilmente transmissível, e o esportista que o contraísse passava a ocupar por toda a semana as manchetes histéricas dos tabloides. É exemplar o caso de Greg Louganis, dono de duas medalhas de ouro nos saltos ornamentais nas Olimpíadas de 1984 e 1988. Nestes Jogos de Seul, Louganis teve seu momento de superexposição ao bater com a cabeça na ponta do trampolim antes de completar, sangrando, o seu salto. Mesmo ferido, completou as provas classificatórias e partiu para a vitória na final contra o chinês Xiong Ni, medalha de prata.

Seis meses antes, Louganis havia sido diagnosticado com o vírus do HIV e seus compatriotas americanos, tão logo os rumores começaram a rondar as piscinas, foram os primeiros a lhe recriminarem o silêncio. O pesadelo, alimentado pela desinformação, era o de que o sangue vertido por Louganis pudesse ter infectado outros inadvertidos nadadores. O tribunal da pseudociência teve de acorrer a John Ward, a suprema autoridade sobre Aids no país, a fim de esclarecer que vírus algum resistiria ao cloro das piscinas. Louganis só se assumiu publicamente, em 1994, ao aceitar participar dos Gay Games. 

Diego Hypólito livrou-se de um fardo

Greg Louganis pagou o preço nos anos 80 pela histeria em torno da Aids

Seja como for, a comoção não é mais tão clamorosa mesmo no país dos bolsotários. O ginasta olímpico Diego Hypólito, apesar de sua medalha de prata na Rio-16, dois títulos e outras três medalhas em Mundiais e mais 69 em Copas do Mundo, sofreu muito antes de se decidir pela exposição pública. Filho de família hiper-religiosa, tem um Cristo tatuado no bíceps. Hoje, pouco mais de um ano depois, circula sem constrangimento com o namorado pelos ambientes sociais. A mesma naturalidade permite ao casal Larissa e Lili, campeãs do vôlei de praia, festejar à luz do dia o próximo nascimento, em outubro, de Gael, que está sendo gerado na barriga de Lili. A dupla tem seis anos de casamento.

O portal Wikipedia lista 427 esportistas assumidamente homossexuais, bissexuais e trans. Do futebol americano ao curling, da patinação artística ao críquete, não há modalidade que não esteja representada. Cada vez mais, o esporte quer ser alegre.

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