Opinião

O amigo fraterno: uma carta de Mino Carta a Paulo Henrique Amorim

Sem se queixar, escasso instante, ele enfrentou mais de cem processos movidos por inimigos variados do desassombrado espírito crítico

Dezembro de 1998. Paulo e Mino na praça da Catedral de Orvieto/Foto: Arquivo Pessoal
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Paulo Henrique, quanta energia alimentava as nossas crenças obviamente inabaláveis naqueles remotos tempos em que Veja nascia. A lembrança é tão precisa que até me parece ouvir a sua gargalhada, a mais contagiante a registrar ao longo da vida, típica de quem não se leva muito a sério. Assim você viverá comigo e muitos outros, entre eles leitores, assistentes, ouvintes, enquanto vivermos, conforme o vaticínio de Voltaire. Muito forte a pegada de Paulo Henrique para que possamos esquecê-la, nem se fale do acima assinado, abençoado por uma amizade fraterna.

Eis o espécime raro, o jornalista autêntico, conta o ocorrido sem omitir as circunstâncias dos acontecimentos, em obediência à verdade factual e ao cumprimento da primeira regra do jornalismo, em proveito da prática do espírito crítico no momento de entender o alcance dos fatos. No Brasil, meu inesquecível amigo nadava contracorrente ao lidar com a realidade com o pensamento voltado para a plateia, a ponto de descurar dos interesses do poder, a começar pelo próprio patrão.

Faz menos de um mês, Paulo Henrique coroou a sua carreira de perseguido ao ser forçado a abandonar a direção do programa Domingo Espetacular, que ancorava na TV Record: deu-se que o bispo Macedo cedesse às pressões do governo Bolsonaro. Creio que este episódio tenha magoado o meu amigo caríssimo, veterano da mudança obrigada de empregadores. Jornalistas autênticos incomodam além da conta.

Falei do profissional, mas penso sobretudo em quem vai fazer muita falta a mim, e muitos mais, inúmeros, por razões distintas, embora sempre válidas. Acima de tudo, vão me faltar as conversas à mesa do jantar, de todo modo nas cercanias de um copo, formas de meditação a dois sobre a vida, o passado e o presente, de cinco anos para cá sobre o País em ruínas. Nunca, porém, fomos colhidos de expressões sombrias, o próprio Paulo Henrique teria cuidado de evitar quedas em depressão.

Era ele um amante da existência, por natureza bem-humorado, o que explica aquela fatídica gargalhada. Sem se queixar por um único, escasso instante, ele enfrentou mais de cem processos movidos por inimigos variados do desassombrado espírito crítico, a flechar mazelas, hipocrisias, mesmo besteiras ciclópicas pronunciadas com solenidade. Ele era analista afiado.

Sobram na minha memória 52 anos de amizade sem falhas, companheiro fiel e leal, sempre presente quando precisei dele, da sua palavra e, frequentemente, daquela risada apaziguante, acompanhada, estivesse ele sentado à mesa, por um tamborilar de dedos a fornecer um fundo musical.

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