Opinião

Não verás país nenhum

Com aprovação da Base Nacional Comum Curricular como está, educação ruma para a adesão à eficiência produtiva ao sabor do setor privado

Não verás país nenhum
Não verás país nenhum
Créditos: Lula Marques
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A educação não deve ter por objeto propagar tais ou quais opiniões, enraizar nos espíritos princípios úteis a certas opiniões, mas instruir os homens a respeito dos fatos que lhes importa conhecer, colocar sob seus olhos as discussões que interessam aos seus direitos ou à sua felicidade, e oferecer-lhes os recursos necessários para que eles possam decidir por si mesmos”

(Marquês de Condorcet)

Por Gilberto Alvarez 

A articulação de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi festejada em dado momento sendo considerada parte de um cuidado de natureza republicana e democrática. Ou seja, houve um momento em que esse projeto suscitou a expectativa de que o Estado estivesse zelando para que as desigualdades entre escolas, no âmago das desigualdades regionais do Brasil, fossem superadas com a implantação de uma base comum. Tratava-se, portanto, de um gesto de “equilibração”.

A partir de 2016 a comunidade de educadores passou a temer que a BNCC estivesse sendo apropriada por interesses expressivamente distantes da pauta de defesa da educação pública.

A insistência em acelerar a velocidade na tramitação forjando a realização de debates com base em consultas na internet e, principalmente, as modificações na redação dos documentos que foram ocorrendo baseadas no clamor de setores conservadores influenciados por movimentos como o “Escola sem Partido”, deu início a um processo de desconfiança e distanciamento dos educadores em relação ao projeto.

Não bastasse isso, a sociedade brasileira viu o empresariado assumir como “sua” a defesa da BNCC e divulgar nas muitas mídias propagandas que vinculavam a aprovação da Base com a chegada de um “necessário” espírito “renovador” com base no “empreendedorismo”.

Percebeu-se que a consulta com 12 milhões de manifestações é apenas uma peça publicitária. Percebeu-se também que esse número artificial tornou-se argumento fundamental para o MEC considerar que “o debate já está feito”, tratando-se agora de concluir a tramitação.

A quarta versão da BNCC que está para ser aprovada recebe críticas até dos membros do Conselho Nacional de Educação (CNE). E o açodamento é considerado injustificável em termos educacionais.

Mas o que essa versão dada como pronta apresenta como diferente e consolidado?

A retomada do ensino religioso, mesmo que não confessional, está presente e estão ausentes as temáticas relacionadas ao tema “gênero”.

Tudo sugere um pacote político preparado para ser apresentado como “reivindicação atendida” junto a setores da população que têm desfigurado o ensino público e têm tornado a docência refém de grupos permeáveis às inspirações fascistas.

A educação infantil, nos termos da BNCC, corre o risco de antecipar a escolarização e aquilo que deveria ser uma pactuação da diversidade para diminuir a desigualdade está parecendo ser uma naturalização da desigualdade para evitar a diversidade.

O que ao início era um pequeno e prudente distanciamento entre educadores e a BNCC tornou-se um abismo.

Confirmou-se que a formulação da BNCC deixou-se impregnar pela “opinião educacional” de setores empresariais que com impressionante superficialidade defendem que o principal problema da educação brasileira é de fundamento gerencial.

Confirmou-se também que, na forma como se apresenta, a BNCC tem lado e esse lado não é o da educação pública, laica, universal e gratuita.

Confirmou-se também que os debates feitos pela área de educação infantil, que sempre resistiu à escolarização precoce da criança pequena, foram desprezados.

A aceleração na tramitação que estamos assistindo, truncando debates e análises críticas, faz parte de uma dinâmica que aposta no sucesso do documento junto ao eleitorado conservador.

Portanto, trata-se de uma estratégica exposição ao desgaste da aprovação sem o apoio dos educadores, para que se possa obter, na sequência, o apoio da sociedade contra os educadores, que têm sido tratados como corporativos e suspeitos.

E tudo se encaminha para que a grande realização do governo na esfera educacional seja a incondicional adesão aos vocabulários da eficiência produtiva.

Talvez a BNCC pudesse ser renomeada e assumida como NVPN.

Para as novas gerações: essa sigla remete ao titulo de um livro de Ignácio de Loyola Brandão, “Não verás país nenhum”. Parece um mote adequado e necessário para explicar os retrocessos a que estamos submetidos neste ruinoso momento.

Gilberto Alvarez é diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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