Cultura

Arte macabra ganha espaço e toma a Biennale de Veneza

Depois da arte povera, da pop art, da arte cinética, o evento envereda por um rastro de cadáveres

Arte macabra ganha espaço e toma a Biennale de Veneza
Arte macabra ganha espaço e toma a Biennale de Veneza
(Foto: Laura Chiesa/Pacific Press/Zuma Wire/Fotoarena)
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Na noite de 18 de abril de 2015, a cerca de 180 quilômetros da ilha italiana de Lampedusa, um barco de pesca virou com centenas de migrantes a bordo. Entre as ondas e embaixo do casco de 23 metros do navio, 700 passageiros que sonhavam com uma vida melhor se afogaram nas águas do Mediterrâneo.

Duas semanas atrás, esse barco gigante enferrujado chegou em Veneza para a Bienal de arte, onde entrou em exposição numa instalação criada pelo artista Christoph Büchel.

Como jornalista trabalhando na Itália, eu vi os resultados trágicos das viagens desesperadas, muitas vezes condenadas, de barcos de migrantes pelo Mediterrâneo. Vi o barco sendo rebocado pelo Canal Giudecca na semana passada e fiquei incomodado. Apesar das boas intenções do artista e dos organizadores do evento – aumentar a consciência pública sobre tragédias marítimas com migrantes –, comecei a pensar que talvez o navio estivesse no lugar errado.

Logo surgiram críticas à chegada dos soçobros, destacadamente pelo partido de extrema-direita Liga, cujo líder, Matteo Salvini, o vice-primeiro-ministro da Itália, fechou os portos do país a navios que resgatam migrantes. Para a Liga, tudo isso é “propaganda política” e uma “manipulação”. Ele propôs que a Bienal transferisse o navio à Suíça, país de Büchel.

O próprio artista não quis dar entrevistas sobre o projeto, que se intitula Barca Nostra (Nosso Barco), mas sua colaboradora, a curadora Maria Chiara di Trapani, disse: “Vivemos um momento trágico e sem memória. Todos vemos os noticiários, e a coisa parece tão distante; alguém morreu no mar, e mudamos de canal”.

Em 18 de abril de 2015, a pior tragédia na rota mediterrânea dos refugiados custou a vida a 700 deles. (Foto: Xinhua via Zuma Wire/Fotoarena)

A presença física do barco, segundo ela, pode ajudar a mudar isso. Ela espera que os visitantes da Bienal “sintam respeito por ele e olhem em silêncio – apenas façam dois minutos de silêncio para escutar e refletir”.

Entendo esse ponto de vista, mas continuo indeciso – embora minhas opiniões políticas sejam diametralmente opostas às do partido de Salvini.

A verdade é que, apesar das boas intenções de Büchel, transformar a comemoração de tais tragédias em espetáculo corre o risco de diminuir – ou de explorar – o sofrimento associado à crise dos migrantes. Ainda mais neste caso, pois o naufrágio em questão não é de qualquer barco: a história de sua recuperação foi sensacional, e expôs uma série de hipocrisias e falhas no percurso.

A 400 metros abaixo do nível do mar, o barco foi recuperado pelas autoridades italianas em 2016, sob a autoridade do então primeiro-ministro Matteo Renzi. O resgate em si tornou-se um espetáculo público, pois toda uma seção da Marinha italiana participou da operação, e o trabalho arrastou-se por meses, ao custo de 9,5 milhões de euros.
“Era nosso dever dar um enterro adequado aos nossos irmãos e irmãs, que de outro modo teriam ficado no fundo do mar”, disse Renzi em um evento no dia em que o navio foi trazido à superfície, com quase 300 corpos presos em seu interior.

Mas, com o fim das comemorações, em fevereiro de 2017, Marco Minniti, ex-ministro do Interior do Partido De-mocrata de Renzi, de centro-esquerda, fechou um acordo com a guarda costeira líbia que lhe permitiu começar a devolver os refugiados para um país onde agências de ajuda relataram incidentes de tortura e abusos.

Enquanto migrantes eram devolvidos a centros de detenção na Líbia, e enquanto homens, mulheres e crianças continuavam morrendo no Mediterrâneo, na Itália um cabo de guerra macabro surgiu entre várias instituições sobre quem iria controlar o navio recuperado. Embora ninguém parecesse preocupado com os migrantes, os navios em que eles viajavam estavam se tornando o foco de dezenas de pessoas com “boas intenções”.

Organizações pediram que o barco fosse transferido para várias cidades italianas, para ser exibido em museus. Finalmente, a cidade de Augusta, na Sicília, onde se baseou a missão de recuperação, obteve autorização para receber o barco, com a garantia de que ele seria usado em um monumento em memória das vítimas da tragédia.

Alguns meses atrás, o barco foi dado “em empréstimo gratuito e temporário” a Büchel para a Bienal de Veneza. “Ele falará à nossa consciência”, disse Ralph Rugoff, curador do festival.

Eu acredito firmemente no valor da arte como instrumento para instigar a consciência e confrontar o establishment. A arte sempre desempenhou esse papel, e é certo que continue a fazê-lo.

No entanto, ainda tenho a sensação de que expor o barco naufragado em um contexto puramente artístico – longe das instituições que foram responsáveis pela tragédia ou das comunidades que presenciam esse tipo de horror ano após ano – corre o risco de perder qualquer sentido de denúncia política, transformando-o numa peça em que a provocação prevalece sobre o objetivo de sensibilizar a mente do espectador.

A decisão de Büchel corre o risco de criar mais uma celebração da nostalgia da tragédia, sem um correspondente ato de convicção no presente; é simplesmente distante demais daqueles a quem sua mensagem deveria se dirigir.

“Incomoda ver as pessoas sorvendo os seus coquetéis diante de um barco que é um esquife”  

Imagino multidões de pessoas bem vestidas, bebericando coquetéis na frente de um barco que, para mim, é um esquife que encerrou 700 pessoas. Imagino o olhar delas fixo na tinta desbotada do barco, do mesmo tom que o céu veneziano. Penso nos 28 sobreviventes do naufrágio, e no que eles dariam por um mero segundo daquela atenção.

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