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O estado de exceção como política pública

A militarização das favelas brasileiras transformou territórios periféricos em laboratórios de violência, propaganda e suspensão permanente de direitos

O estado de exceção como política pública
O estado de exceção como política pública
Operação policial no Rio de Janeiro em 28 de outubro de 2025 deixa mais de 60 mortes. Foto: Mauro Pimentel/AFP
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Era uma tarde de domingo ensolarada quando, em 28 de novembro de 2010, hasteadas por policiais, as bandeiras do Brasil e da Polícia Civil do Rio de Janeiro tremulavam no ponto mais alto do Complexo do Alemão. A ação acontecia dois dias depois da espetacular operação em que mais de 2.600 agentes de segurança pública ocuparam o complexo sob a transmissão ao vivo de helicópteros da TV.

Aquela não era a primeira megaoperação policial de ocupação na história das favelas cariocas, mas havia algo de diferente: a massiva cobertura da imprensa acompanhada de uma grande máquina de propaganda política. Aquela tomada do Alemão não era apenas mais um fato corriqueiro na história da cidade, mas sim um grande fato nacional.

Vencemos, trouxemos a liberdade para a população do Alemão”, disse à época o então comandante-geral da PMERJ, Mário Sérgio Duarte.

Quase 15 anos se passaram até que o vizinho Complexo da Penha amanhecesse sob fogo e fumaça, também transmitidos em todos os jornais com imagens que lembravam a guerra na Faixa de Gaza. A Operação Contenção havia acabado de ser responsável pela maior chacina da história do País, deixando um rastro de mais de 100 corpos entre os complexos da Penha e do Alemão.

“Tirando a vida dos policiais, a operação foi um sucesso”, disse o governador Cláudio Castro (PL), enquanto os moradores do complexo ainda retiravam corpos das matas. A semana macabra ainda seguiu com algumas pesquisas apontando as altas taxas de apoio da população à operação.

De “sucesso em sucesso”, os 15 anos que separam as duas operações no Rio de Janeiro foram marcados por tiroteios, assassinatos, desaparecimentos forçados, tiros de helicópteros, aulas suspensas, comércios fechados, avanço das milícias e até das mesmas facções tantas vezes supostamente derrotadas. Durante uma década e meia, o milagroso remédio das ocupações policiais foi receitado e administrado cotidianamente nas favelas cariocas, ainda que o paciente não apresentasse qualquer sinal de melhora. 

Se há poucas dúvidas quanto ao real impacto que décadas de operações militarizadas tiveram no combate ao crime organizado – vide a expansão das milícias e das facções – certo é que o impacto delas no cotidiano dos cidadãos comuns de favelas e periferias do Rio de Janeiro é avassalador.

Mas o mantra catastrófico, diariamente repetido nas redes e nos jornais de todo o País, de que o RJ não tem como dar certo conseguiu cumprir seu papel de consolidar a ideia de que não há alternativa. Criou-se também um certo paradoxo carioca: nas palavras dos especialistas, nada que já tenha sido feito pela segurança pública em qualquer outro lugar funcionaria no RJ, porque lá a coisa é diferente. Ao mesmo tempo, é a violência no RJ que serve de paradigma para estes mesmos especialistas no debate sobre as políticas de segurança de todo o País.

Aqui, não se trata de questionar o real tamanho do atual problema carioca, mas de entender os sentidos políticos dos debates que o circundam. O RJ não é o berço da maior facção criminosa do País, tampouco apresenta os piores índices criminais do Brasil, mas há uma escolha política de  produzir debates e pseudo-soluções que tenham seu cenário como referência única. 

Nesse sentido, os dois meses que separam a Operação Carbono Oculto da Operação Contenção são simbólicos. A primeira, uma ação de cooperação entre órgãos estaduais e federais, civis e policiais, atingiu o coração financeiro do PCC e o andar de cima do crime organizado, chegando até a Faria Lima sem disparar uma única bala. Mas foi a chacina da segunda que serviu de motor para desfigurar um projeto de lei de combate às facções proposto pelo governo, instaurar uma CPI sobre o crime organizado e movimentar os debates acerca da ainda estagnada PEC da Segurança Pública em apenas uma semana. Por quê?

O novo dicionário de segurança pública que está na ponta da língua das autoridades cariocas dá algumas respostas. “Seteiras”, “barricadas”, “troias”, “blackspots”, “guerra assimétrica”, “narcoterrismo”. O vocabulário repetido pela cúpula da Secretaria de Segurança do RJ passou a nortear as mesas-redondas e os discursos políticos mais acalorados em outras capitais e em Brasília, sustentando uma visão da violência e da criminalidade como questões meramente territoriais.

Em São Paulo, por exemplo, o governo passou a propagandear a letal Operação Escudo como “o maior evento policial de retomada do território e de intensificação das forças de segurança na América Latina”. Na capital paulista, a mudança da sede estadual para o centro colocou a Favela do Moinho na mira, criminalizando movimentos sociais e classificando o território como “bunker do PCC”, enquanto tratores derrubavam casas de moradores.

Portanto, nesse discurso o problema se resume a espaços perdidos ou conquistados, ganhos e perdas que adquirem um caráter militar no qual a guerra por territórios se sobrepõe a qualquer debate ou política pública de caráter econômico e social.

Assim, não importam questões como o sistema de produção de desigualdades ou a falta de regulação sobre certos mercados utilizados pelo crime para lavar o seu dinheiro e multiplicar o seu poder. Em um eterno “na volta a gente compra”, alimenta-se, única e exclusivamente, a ideia de que estes outros debates só serão possíveis após o ganho territorial a ser conquistado militarmente, criando uma lógica invertida em que o combate às causas do problema é sempre jogado para depois.

Esta visão de segurança pública tem duas principais consequências políticas. De um lado, criminaliza-se toda a população de um determinado território, independentemente de sua vinculação com o crime ou não. De outro, permite-se o aumento ilimitado de poder das forças policiais nos territórios caracterizados como inimigos.

Somados, esses dois aspectos vêm moldando as grandes cidades em dois espaços bem delimitados. Um território onde as pessoas são hiper-vigiadas em troca de poderem manter seus principais direitos de cidadania, e outro periférico, onde a cidadania e os direitos mais básicos são colocados em suspensão cotidianamente para que o Estado possa, em nome da ordem, agir sem qualquer tipo de freio, escolhendo quem deve morrer e quem pode viver. Neste cenário, atividades que geram lucro e poder não só para membros de facções, como para setores econômicos e políticos que delas se beneficiam, seguem incontestadas e blindadas pela narrativa das guerras territoriais.

Em uma passagem de sua obra, o famoso teórico camaronês Achille Mbembe considera a Palestina o exemplo mais bem acabado de um território em estado de exceção permanente. Após narrar com riqueza de detalhes cenas em que helicópteros Apache sobrevoam áreas para “matar a partir do céu” enquanto um “bulldozer armado serve no terreno como arma de guerra e de intimidação”, Mbembe conclui:

Como bem ilustra o caso palestino, a ocupação colonial pós-moderna é, pois, a concatenação de múltiplos poderes em jogo (…). A combinação destes poderes outorga ao poder colonial o domínio absoluto sobre os habitantes do território ocupado. (…) Permite uma modalidade, do tipo de direito de matar, que não distingue o inimigo externo do interno. Povos inteiros são o alvo do soberano. As vilas e as cidades sitiadas são confinadas e erradicadas do mundo. O quotidiano é completamente militarizado. Os comandantes militares locais têm sinal verde para serem discretos no momento de decidir quando (e quem) podem alvejar. A movimentação entre as células territoriais requer autorização formal. As instituições civis locais são sistematicamente destruídas. A população sitiada permanece privada dos seus meios de sobrevivência. Execuções em massa podem mesmo ser levadas a cabo de maneira invisível”.

Em maio de 2025, tratores passaram a demolir casas no Moinho enquanto as negociações para a remoção ainda aconteciam. Em junho de 2018, na ação que resultou no assassinato do menino Marcus Vinícius, a ONG Redes da Maré contabilizou mais de 100 marcas de tiro na comunidade disparadas de um helicóptero da Polícia Civil. Em dezembro de 2019, a repressão a um baile funk em Paraisópolis resultou na morte de nove jovens enquanto PMs eram filmados agredindo os moradores. Em 2018, quando o RJ estava sob a GLO, moradores de Vila Kennedy, Vila Aliança e Coreia denunciaram que eram obrigados a apresentar documentos e serem fotografados por policiais para transitarem entre as comunidades.

Helicópteros matam do céu enquanto blindados derrubam casas no chão, criminalização de espaços de cultura e lazer, controle rígido sobre o ir e vir. O cenário pintado por Mbembe para descrever o maior símbolo de um estado de exceção permanente no mundo, o território palestino, poderia muito bem ser o de uma favela ou periferia do Brasil.

Para o bem ou para o mal, as eleições de 2026 prometem colocar o tema da segurança pública no eixo central do modelo de desenvolvimento que escolheremos para o Brasil nos próximos anos. Impedir o crescimento de um projeto que pretende multiplicar Faixas de Gaza pelo País é o dever de cada um que realmente se preocupa com a garantia dos direitos do nosso povo.

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