Augusto Diniz | Música brasileira
Jornalista há 25 anos, Augusto Diniz foi produtor musical e escreve sobre música desde 2014.
Augusto Diniz | Música brasileira
Livro revisita discos lançados há 40 anos em um mercado musical em transição
‘1985 – O Ano que Repaginou a Música Brasileira’ traça um amplo panorama da indústria fonográfica nacional antes da internet
O recém-lançado 1985 – O Ano que Repaginou a Música Brasileira (Garota FM Books; 512 páginas), organizado por Célio Albuquerque, reúne 85 textos assinados por diferentes autores sobre 85 discos lançados naquele ano decisivo. O livro se propõe a mais do que uma celebração de efeméride: oferece um panorama consistente de um mercado fonográfico em ebulição, às vésperas de transformações profundas.
A seleção atravessa gêneros diversos — do sertanejo ao samba, do pop rock à música instrumental — e revela um momento em que artistas e gravadoras buscavam novos caminhos em meio a mudanças estéticas, tecnológicas e políticas. As resenhas, escritas por jornalistas, pesquisadores e músicos, oscilam entre análises atentas aos detalhes da produção e leituras mais amplas, que situam cada projeto em seu contexto histórico. Em comum, os textos evidenciam uma indústria e uma cena artística em claro estado de transição.
Um exemplo eloquente é o texto de Taissa Maia sobre Eu Desatino, de Angela Ro Ro. A autora explora com sensibilidade a diversidade temática — “entre poesia e loucura” — e rítmica do álbum lançado em 1985. Visceral, o disco marca o auge criativo da cantora, que, embora tenha permanecido uma grande compositora até o fim da carreira, perderia espaço num mercado cada vez menos interessado em canções de tom autobiográfico e confessional.
Outro destaque é a narrativa de Leoni sobre Cazuza, o primeiro disco solo do cantor. O autor detalha particularidades da produção e ressalta como o álbum ajudou a reposicionar Cazuza para além do rótulo do rock, como se percebe em faixas como Codinome Beija-Flor. Leoni, parceiro de Cazuza e Ezequiel Neves em Exagerado — o maior sucesso do disco —, contextualiza ainda a saída do cantor do Barão Vermelho, apontada como a primeira grande cisão entre bandas do pop rock nacional dos anos 1980. Um movimento que se repetiria depois, com o próprio Leoni deixando o Kid Abelha, Frejat afastando-se do Barão Vermelho e Arnaldo Antunes e Nando Reis saindo dos Titãs.
Entre os músicos que escrevem sobre seus próprios trabalhos, Marcos Sabino se debruça sobre Simples Situation, detalhando a busca por uma gravadora que garantisse maior visibilidade ao disco. No texto, ele relata a troca da Polygram pela Som Livre, então ligada à Globo, por acreditar que a proximidade com a emissora poderia ampliar sua exposição — uma estratégia bastante coerente para a lógica do mercado da época.
O DJ Zé Pedro assina um texto emotivo sobre Aprendizes da Esperança, de Fafá de Belém, lançado em 1985. Para ele, o álbum simboliza um sopro de fé nos novos tempos inaugurados com a eleição — ainda que indireta — de um civil para a Presidência da República: Tancredo Neves, que morreria antes de tomar posse, levando José Sarney ao cargo. Zé Pedro ressalta o engajamento “de corpo e alma” da cantora com a democracia e sua atuação ativa na campanha das Diretas Já.
Chris Fuscaldo analisa De Gosto, de Água e de Amigos, de Zé Ramalho, revelando os bastidores de um período turbulento na vida do artista, então “afogado em dívidas” e envolvido com drogas. O disco ganhou novo fôlego com a inclusão tardia de Mistérios da Meia-Noite, música que entrou na trilha sonora da novela Roque Santeiro — prova de como a presença em folhetins televisivos podia ser decisiva para o sucesso comercial de um álbum.
Essa relação íntima entre música e televisão atravessa outros textos do livro. Guilherme Arantes, ao escrever sobre Despertar, reconhece sem rodeios: “As telenovelas foram fundamentais para mim”. Não por acaso, suas baladas se tornaram onipresentes no imaginário popular das décadas de 1970 a 1990.
O axé music aparece como força emergente nos textos sobre Mensageiro da Alegria, de Gerônimo, analisado por Osmar Marrom Martins, e Magia, de Luiz Caldas, apresentado por Ceci Alves. O primeiro trouxe É D’Oxum, parceria de Gerônimo com Vevé Calasans que se tornaria um hino informal na Bahia. Esses discos ajudam a entender o nascimento de um movimento que mudaria o mercado musical brasileiro, impulsionado pelas micaretas e pela expansão do carnaval de Salvador.
No sertanejo, Daniel escreve sobre o disco de estreia da dupla com João Paulo, Amor, Sempre Amor, destacando a preferência por canções românticas, embora ambos dominassem o cancioneiro tradicional do gênero. Duplas como João Paulo & Daniel ajudaram a moldar o sertanejo contemporâneo ao longo da década de 1980.
Já no campo instrumental, Fernando Jonavo assina o texto sobre Instrumental, de Almir Sater, definindo o álbum como um verdadeiro “tratado de viola” e ressaltando a excelência técnica do violeiro sul-mato-grossense, já plenamente evidente naquele momento.
No samba, o destaque vai para o texto de Marcelo Ferro sobre Divina Luz, do Fundo de Quintal. No quinto disco do grupo, a introdução de baixo, bateria e teclado — sob a produção de Milton Manhães — alterou a formação tradicional do samba e ampliou o público da banda, inaugurando uma sonoridade mais comercial e influente.
Ao fim, 1985 – O Ano que Repaginou a Música Brasileira se afirma como leitura fundamental para compreender os comportamentos artísticos e as engrenagens do mercado fonográfico daquele período, cujos efeitos ainda reverberam. Célio Albuquerque conseguiu reunir um time capaz de oferecer um panorama amplo e articulado de como operava a indústria da música antes da internet — quando discos, rádios e novelas ditavam o ritmo do sucesso.
Em tempo: este colunista participa do livro com o texto sobre o álbum duplo — o único entre os 85 selecionados — Lira do Povo, de Hermínio Bello de Carvalho.
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