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Os ventos do Norte não movem moinhos

A transição energética entre o colonialismo verde e a soberania sustentável

Os ventos do Norte não movem moinhos
Os ventos do Norte não movem moinhos
Imagem: iStockphoto
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Até o observador pouco atento constata que o tempo em que vivemos é de transformações profundas e aceleradas. A dissolução da ordem internacional pós-pandemia revelou não apenas novas guerras, mas novos modos de disputa pelo poder global. Em poucos anos, a busca por energia tornou-se o principal eixo das tensões econômicas e políticas entre as grandes potências. É nesse cenário de reconfiguração mundial que a chamada transição energética emerge, ao mesmo tempo, como promessa de um futuro sustentável e como campo de uma nova disputa colonial.

Os sinais dessa reconfiguração do poder tornam-se cada vez mais evidentes. Entre fevereiro de 2022 e o presente, o conflito russo-ucraniano, que por quase uma década se manteve como questão regional, transbordou suas fronteiras, tornando-se um campo de disputa entre potências e blocos geopolíticos. Ao mesmo tempo, a guerra de Gaza revelou, em escala distinta, o caráter assimétrico das batalhas contemporâneas e o uso da força como instrumento de reorganização da hegemonia global. Em ambos os casos, a energia e o controle territorial permanecem no centro das motivações estratégicas.

Esse cenário, composto de mais de 50 guerras regionais, a maioria em solo africano, revela a transição de um sistema internacional unipolar para uma ordem multipolar em disputa. A hegemonia norte-americana, antes incontestada por seu modelo de globalização neoliberal, enfrenta o avanço de potências como China, Índia e Rússia, que afirmam seus interesses estratégicos em um jogo no qual a escalada das disputas comerciais, tecnológicas e militares reflete uma realidade geopolítica cada vez mais instável. Esse processo reduz a cooperação entre os países, ao mesmo tempo que acelera a corrida hegemônica nos principais centros do capitalismo.

Os efeitos das mudanças climáticas se tornaram mais violentos e presentes – Imagem: Amanda Jufrian/AFP

Paralelamente, a crise climática consolida-se como a mais urgente e abrangente ameaça global do século XXI. Resultado de um modelo de desenvolvimento intensivo em carbono, baseado na queima de combustíveis fósseis e uso de recursos naturais, essa crise tem provocado impactos sistêmicos que transcendem fronteiras nacionais e atingem escala planetária. Eventos climáticos extremos como ondas de calor e de frio, secas prolongadas, chuvas intensas, inundações, furacões, incêndios florestais e deslizamentos de terra afetam diretamente a segurança alimentar, a saúde pública, a infraestrutura urbana e os fluxos migratórios, com efeitos ainda mais dramáticos nos países mais vulneráveis. A transição para uma economia de baixo carbono, portanto, deixa de ser uma mera preferência ambiental e impõe-se como uma exigência civilizatória, com implicações decisivas para o futuro dos seres humanos e do planeta.

Nesse contexto, a energia assume um papel estratégico crítico. Epicentro das disputas geopolíticas e das soluções exigidas pela emergência climática, a energia, da produção ao consumo, tornou-se um dos principais vetores de transformação das sociedades contemporâneas, influenciando decisões políticas, redefinindo modelos econômicos e moldando os caminhos possíveis para o futuro. Mas o modo como essa transformação se realiza está longe de ser neutro. Sob o discurso da sustentabilidade, as grandes potências buscam redefinir as hierarquias globais de produção. Exportam tecnologias limpas de alto valor agregado, enquanto buscam importar commodities verdes, como hidrogênio, minerais críticos e biocombustíveis. O Sul Global, por sua vez, corre o risco de repetir a velha dependência, agora revestida de verde. A financeirização da natureza e a imposição de padrões de transição que ignoram as capacidades e especificidades nacionais atualizam as antigas formas de subordinação econômica.

Nesse quadro, a COP30, realizada em Belém, tomou um sentido desafiador ao status quo, pois colocou o Brasil no centro do debate global sobre o futuro energético do planeta. Embora não tenha conseguido estabelecer um consenso acerca do futuro dos combustíveis fósseis, a presidência brasileira buscou protagonismo e anunciou a elaboração de duas iniciativas importantes: o Mapa do Caminho para a Transição dos Combustíveis Fósseis de maneira justa, ordenada e equitativa, e o Mapa do Caminho para interromper e reverter o desmatamento. Além disso, o encontro marcou avanços no financiamento para adaptação climática e promoveu a inclusão de pautas historicamente marginalizadas, como as dos povos indígenas e das comunidades afrodescendentes, reafirmando o papel do Brasil como articulador de uma agenda ambiental mais diversa, justa e representativa do Sul Global.

O desafio brasileiro é fazer da transição energética não um novo ciclo de dependência, mas o início de uma era de autonomia e inovação

Por trás das resoluções, o evento expôs com nitidez o dilema geopolítico da transição energética. Os países do Sul Global são chamados a escolher entre a adesão a um colonialismo verde e a difícil tarefa de construir uma soberania sustentável. Tudo indica que o segundo caminho prevaleceu, em grande medida graças à atua­ção decisiva dos representantes e autoridades brasileiros, que souberam afirmar uma posição de protagonismo em meio às disputas globais.

Esse movimento tornou ainda mais evidente a percepção de que as guerras que se multiplicam pelo mundo são, ao mesmo tempo, sintomas e causas de uma mudança profunda na estrutura das contradições globais. A principal delas já não se define apenas pelo par democracia e autoritarismo, dominante nas últimas décadas, nem se limita ao embate entre negacionismo e sustentabilidade, que marcou os anos recentes. O eixo das tensões internacionais deslocou-se novamente. Hoje, o centro da disputa opõe soberania e imperialismo, categorias que voltam a definir o sentido político das relações entre as nações.

Assim, a geração, o uso e a disponibilidade de energia são hoje, mais que nunca, questões de segurança nacional. Um país que não domina suas fontes e tecnologias energéticas permanece vulnerável. A transição energética, portanto, implica enfrentar a espinhosa e contra-hegemônica tarefa de reconstruir as capacidades estatais de planejar, investir e inovar, necessárias para garantir o domínio público sobre o território e os recursos estratégicos.

O fato de a COP30 ter ocorrido em território brasileiro, aliado à competência com que foram conduzidas nossas operações diplomáticas, pesou positivamente no desempenho do País durante o evento. Há, porém, um fator ainda mais relevante para essa projeção de interesses. O Brasil reú­ne, talvez, as condições mais favoráveis, entre todas as nações, para liderar um novo paradigma de desenvolvimento.

Na COP30, em Belém, a sociedade civil, pela primeira vez, foi protagonista e não coadjuvante nas discussões – Imagem: Bruno Peres/Agência Brasil

Somos detentores de uma das matrizes elétricas mais limpas do mundo, da maior biodiversidade do planeta e de vastos recursos naturais. Estamos, portanto, habilitados ao exercício do protagonismo na construção de uma economia de baixo carbono capaz de gerar emprego, renda e inclusão social. Resta-nos desenvolver a capacidade de transformar a transição energética em projeto nacional. Para tanto, devemos rejeitar a adoção de manuais importados dos chamados países desenvolvidos. Sem negligenciar o aprendizado que suas experiências possam oferecer, precisamos investir fortemente em tecnologias e práticas que maximizem nossos próprios ativos, sejam eles a riqueza natural ou a capacidade científica e tecnológica voltada à solução dos nossos desafios.

A emergência climática é inegável e exige respostas rápidas. Suas consequên­cias já redesenham paisagens e deslocam populações. Mas o modo como enfrentamos – e enfrentaremos – essa crise é, antes de tudo, uma escolha política. A descarbonização precisa vir acompanhada de justiça social e soberania tecnológica. O desafio brasileiro é fazer da transição energética não um novo ciclo de dependência, mas o início de uma era de autonomia e inovação.

Estamos, portanto, naquele ponto do caminho em que os trilhos do colonialismo verde e os da soberania sustentável se cruzam. Diante dessa encruzilhada histórica, cabe-nos tomar uma decisão estratégica que marcará profundamente o caráter do País nas próximas décadas. A depender da opção que adotarmos, poderemos nos perpetuar como meros fornecedores de commodities verdes e créditos de carbono. Ou nos constituir como arquitetos de uma nova economia verde: popular, criativa e independente.

Mais do que escolher um futuro energético, o Brasil está definindo o lugar que deseja ocupar no concerto das nações. •


*Angelo Del Vecchio é diretor-geral da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo; Rafael Rodrigues da Costa é professor da FESPSP.

Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Os ventos do Norte não movem moinhos’

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