Economia
Delírios imperiais
Trump repete, na sua farsa trágica, a desdita da Inglaterra
No prólogo de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, famoso texto de Karl Marx, Herbert Marcuse escreve: “A análise que Marx faz do processo de evolução da Revolução de 1848 para o domínio autoritário de Luís Bonaparte antecipa a dinâmica da sociedade burguesa avançada: a liquidação do seu período liberal que se consuma em razão da sua própria estrutura”. Marcuse destaca as alterações que emergiram nas sociedades burguesas promovidas pelas forças que se movem nos subterrâneos. “A liquidação do seu período liberal que se consuma em razão de sua própria estrutura.” Isso permite ao filósofo da Escola de Frankfurt modificar o conhecido parágrafo de abertura do 18 de Brumário. No século XX, diz Marcuse, o horror do nazifascismo exige “uma correção das sentenças introdutórias de O 18 de Brumário: os ‘fatos e personagens da história mundial’ que ocorrem, ‘por assim dizer, duas vezes’, na segunda vez não ocorrem mais como ‘farsa’. Ou melhor: a farsa é mais terrível do que a tragédia à qual ela segue”.
A farsa terrível encontrou abrigo nos ouropéis do documento trumpista, a Estratégia de Segurança Nacional. Entre os incômodos do King Trump estão a Europa “decadente”, a América Latina e, mais importante, os desafios econômicos e políticos lançados pela China.
Escolhi passagens do documento para ilustrar as ambições imperiais de Donald Trump, o rei da América.
O rei anda incomodado com a Europa, a América Latina e, sobretudo, com a China
“O presidente Trump sozinho derrubou mais de três décadas de suposições equivocadas dos EUA sobre a China: acreditando que, ao abrir nossos mercados para a China, incentivar empresas americanas a investir na China e terceirizar nossa produção para a China, facilitaríamos a entrada da China no que é conhecido como a ‘ordem internacional baseada em regras’. Algo assim não aconteceu. A China tornou-se rica e poderosa. Ela usou ambas as características a seu favor. As elites norte-americanas – ao longo de quatro administrações sucessivas de ambos os partidos políticos – ou facilitaram voluntariamente a estratégia da China ou se recusaram a enxergar a realidade.”
Mais adiante, sua Majestade Trump I parte para o ataque:
“Os Estados Unidos possuem ativos significativos – a economia e o exército mais poderosos do mundo, inovação de ponta, Soft Power incomparável e uma tradição histórica de apoio aos nossos aliados e parceiros – que nos permitem competir. O presidente Trump está construindo alianças e fortalecendo parcerias na região do Indo-Pacífico que formarão a base para segurança e prosperidade de longo prazo”.
No livro The Spellbinders, Ann Ruth Willner aponta as relações entre os líderes carismáticos e seu séquito de seguidores:
1. O líder é percebido pelos seguidores como de alguma forma sobre-humana;
2. Os seguidores acreditam cegamente nos líderes;
3. Os seguidores cumprem incondicionalmente as diretrizes do líder para a ação;
4. Os seguidores dão ao líder sem qualificação apoio emocional.
Nos albores do século XXI, observamos “A liquidação da democracia liberal que se consuma em razão de sua própria estrutura”. O monarca Trump repete à saciedade os slogans “A América vai ser grande outra vez” ou “Vamos devolver os empregos aos norte-americanos”. Em suas arengas eleitoreiras, prometia, antes de recuar, a imposição de tarifas sobre produtos chineses, brasileiros, mexicanos, canadenses e europeus, além de promover a volta das empresas norte-americanas (des)localizadas em outras plagas.
Os eflúvios protecionistas são escoltados pela súcia de super-ricos das big techs que se empenham no projeto de apropriação privada das instituições do Estado. Nos seus movimentos, Trump atende aos propósitos da tirania tecnológica das Sete Magníficas, Apple, Microsoft, Amazon, Alphabet (Google), Meta (Facebook), Nvidia e Tesla. São estes os agentes do tecnofascismo.
Por ocasião do 250º aniversário da Doutrina Monroe, a Casa Branca emitiu uma declaração oficial na qual Trump afirmou seu apego a esse pilar estruturador da política externa dos EUA e também a intenção de atualizar a Doutrina Monroe, complementando-a com um “corolário de Trump”.
A Segunda Guerra terminou com a primazia dos Estados Unidos sobre a Europa e o resto do mundo – Imagem: StockTrek/AFP
Seria demasiada ousadia afirmar que o presidente dos EUA encarna o espírito de Luís Bonaparte. Como personagens de momentos históricos, Trump e o sobrinho de Napoleão expressam, no entanto, as rupturas socioeconômicas que não cessam de atormentar e surpreender mulheres e homens “em razão de sua própria estrutura”.
Escrevemos no livro Avenças e Desavenças da Economia que as concepções ossificadas – à direita e à esquerda – deixam de examinar o conjunto de relações que estruturam o capitalismo como uma organização econômica, social e política singular, singular por histórica. Isso significa que essas relações se reproduzem num movimento incessante de diferenciação e autotransformação “no interior de sua estrutura”. Não há determinismo nem indeterminação. O capitalismo se transforma no processo de reprodução de suas próprias estruturas.
Em meados do século XIX, as economias da Alemanha e dos Estados Unidos se desenvolveram sob o “livre comércio”, patrocinado pela hegemonia industrial e monetária-financeira inglesa. No fim do século, a Belle Époque iria desfilar seu aplomb e suas aparências à beira do abismo cavado nos territórios do protecionismo crescente e disputas imperialistas travadas entre a Inglaterra, os Estados Unidos e a Alemanha.
O poder dos EUA se debilitou no exercício de suas forças
O equilíbrio entre as potências e o padrão-ouro clássico foram as marcas registradas do apogeu da Ordem Liberal Burguesa, um conjunto de práticas e instituições encarregadas da coordenação de um arranjo internacional que abrigava a hegemonia financeira inglesa. O liberalismo britânico fomentou o desenvolvimento das “novas” economias industriais dos trustes e cartéis nascidos na Alemanha e nos Estados Unidos, e a constituição de uma periferia “funcional”, fonte produtora de matérias-primas e alimentos.
Às vésperas da Primeira Guerra Mundial explicita-se a fragilidade da Inglaterra como centro principal capaz de coordenar as finanças internacionais, dada a presença perturbadora de Wall Street e a ascensão dos centros financeiros concorrentes no continente europeu. No fim do século XIX, os EUA já eram a economia industrial mais poderosa do planeta, além de ostentar, graças à excepcional dotação de recursos naturais, a posição de grande exportadora de matérias-primas e alimentos, e de contar com Nova York, um centro financeiro e de negócios capaz de promover, simultaneamente, o investimento de alto risco em novos setores e a rápida centralização de capitais.
Em 1913, a capacidade industrial norte-americana havia ultrapassado com folga aquela dos principais competidores europeus, Alemanha e Inglaterra. Mas a constituição da hegemonia dos EUA não pode ser compreendida sem a avaliação dos efeitos das duas grandes guerras, a de 1914–1918 e a de 1939–1945. O período do entreguerras liquidou de vez a liderança inglesa consubstanciada no imperialismo do livre comércio e no padrão libra-ouro. As dívidas de guerra e a nova divisão internacional do trabalho converteram rapidamente a Pérfida Albion em uma potência decadente. Os Estados Unidos assumem a posição dominante em termos econômicos e financeiros e saem do conflito com mais da metade das reservas em ouro mundiais.
Em seu furioso antiglobalismo, Trump repete, como farsa trágica, a desdita da Inglaterra. Não seria impróprio afirmar que, tal como o poder britânico, o poder norte-americano se debilitou no exercício de suas forças. Mais uma vez, no movimento de suas estruturas, o capitalismo iludiu as conjecturas e os projetos dos homens. O exercício do poder dos EUA desencadeou transformações financeiras, tecnológicas e geopolíticas que culminaram no enfraquecimento de sua hegemonia.
A globalização sob o comando de Washington forneceu as ferramentas para a ascensão da China – Imagem: iStockphoto
A partir dos anos 1980, a liberalização das contas de capital e a desregulamentação financeira e comercial revigoraram a vocação universalista das empresas norte-americanas, europeias e japonesas. No afã competitivo de reduzir os custos salariais e escapar do dólar valorizado, a produção manufatureira dos EUA abandonou seu território para buscar as regiões em que prevaleciam baixos salários, câmbio desvalorizado e perspectivas de crescimento acelerado. Isso promoveu a “arbitragem” dos custos salariais à escala mundial, estimulou a flexibilização das relações de trabalho nos países desenvolvidos e subordinou a renda das famílias ao aumento das horas trabalhadas. O desemprego aberto e disfarçado, a precarização e a concentração de renda cresceram no mundo abastado.
No outro lado do mesmo processo, as lideranças chinesas valeram-se da “abertura” da economia ao investimento estrangeiro ávido em aproveitar a oferta abundante de mão de obra. Apostaram na combinação favorável entre câmbio real competitivo, juros baixos para estimular estratégias nacionais de investimento em infraestrutura, absorção de tecnologia com excepcionais ganhos de escala e de escopo, adensamento das cadeias industriais e crescimento das exportações.
As manchetes proclamam o paradoxo contemporâneo. Há riscos de guerra comercial entre o protecionismo dos Estados Unidos e o compromisso da China com o livre comércio. Às ameaças norte-americanas de protecionismo, os chineses responderam defendendo o multilateralismo do livre comércio. Trump grita: “Há anos os chineses, roubam os nossos empregos!” •
Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Delírios imperiais’
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