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Predadores digitais

A nova arquitetura do poder emerge da aliança entre as big techs e os autocratas ao redor do mundo, prega Giuliano Da Empoli

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Os bilionários do Vale do Silício apostam numa democracia “iliberal”, pró-forma, afirma o autor, que explora o tema em seu mais recente livro – Imagem: Shawn Thew/AFP e Brigitte Baudesson
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Em seu livro mais recente, A Hora dos Predadores – Como Autocratas e ­Magnatas Digitais Estão Levando o Mundo à Beira de Um Colapso Orquestrado, o escritor e jornalista ­ítalo-suí­ço Giuliano Da Empoli faz uma previsão sinistra: a democracia, tal como a conhecemos hoje, dará lugar a regimes iliberais que, sob o comando de líderes nacionalistas, racistas e reacionários erguerão governos cada vez mais inalcançáveis por  qualquer controle externo, nos quais o poder político será exercido e compartilhado com czares das empresas de tecnologia. Nada expressa melhor essa realidade do que a aliança entre o presidente dos EUA, Donald Trump, e os magnatas da tecnologia e da nova mídia como Elon Musk, Jeff Bezos e Mark ­Zuckerberg. Ao mesmo tempo, potências como a Rússia e a China investem no poder crescente da tecnologia como ferramenta para um modo cada vez mais agressivo de fazer política – interna e internacionalmente –, ­enquanto modelos ligados à antiga democracia liberal europeia não fazem mais do que oferecer velhas respostas a novos problemas. Da Empoli vê um paralelo com a chegada dos espanhóis à América, no século XVI. Para ele, o desembarque dessa nova forma de fazer política é tão assimétrico e destruidor que as estruturas ­atuais de contenção – juízes, jornalistas, ­acadêmicos e partidos tradicionais, seja à direita, seja à esquerda – acabam trucidados por ferramentas e estratégias muito mais potentes.

CartaCapital: Em seu livro mais recente, o senhor diz que os predadores buscam erguer algo no lugar da democracia liberal. Que tipo de regime seria esse?
Giuliano Da Empoli: Uma democracia iliberal, na qual provavelmente ainda haveria eleições, mas realizadas por um regime que não aceitaria a separação de poderes ou qualquer tipo de freio e contrapeso, de modo que pudesse reduzir severamente o peso e o poder de juízes, da imprensa, da mídia, das regras. Os predadores sobre os quais falo em meu livro são homens da política e da tecnologia que têm muitas diferenças entre si, mas o que eles têm em comum é o recurso às artimanhas para reduzir qualquer tipo de controle, qualquer tipo de regra que possa limitar o poder que eles têm.

“Quem tentar regular as redes virará inimigo dos Estados Unidos”

CC: Qual o nível de coordenação e de convergência entre esses predadores? Eles trabalham em aliança, estão todos do mesmo lado e compartilham a mesma ideologia?
GDE: Se você observar alguns políticos como Donald Trump, Jair Bolsonaro e alguns desses líderes de extrema-direita na Europa, perceberá que eles são nacionalistas, muitas vezes racistas, e dizem defender valores tradicionais ou ao menos fingem defendê-los em muitos aspectos. Mas isso não significa que eles tenham todos a mesma agenda e os mesmos valores. O que eles têm em comum é a ideia de que é preciso avançar com velocidade total contra as regras, para que possam livrar-se do velho establishment. Acreditam ser necessário avançar contra as antigas elites políticas tradicionais, tanto de esquerda quanto de direita, contra a mídia, contra os contrapesos e tudo mais. É sobre isso que eles estão de acordo. Há nuances, claro, mas eles concordam sobre isso. Não se trata, portanto, de uma convergência no que diz respeito aos aspectos formais das alianças, mas de uma convergência objetiva para avançar rapidamente contra o ­establishment. Para eles, essas elites políticas tradicionais, de direita e de esquerda, realmente não importam. Note que todos eles vêm do mesmo lugar: são outsiders que acreditam em agir rápido e em quebrar paradigmas. E eles acham que as velhas elites não entendem nada isso. Acham que os procedimentos e as regras das democracias liberais estão fora de moda, são muito lentas e cheias de amarras que não permitem que se faça nada. É mais esse tipo de visão que eles têm em comum.

CC: Elon Musk envolveu-se com Trump, mas também se afastou dele. Isso indica alguma dificuldade de coexistência entre tecnocratas e políticos?
GDE: Sim. Há, claro, muitas questões de egos e de conflitos entre eles. Trump aproximou-se de Sam Altman, com quem Musk brigou em 2018 depois de ter sido sócio na fundação da OpenAI, criadora do ChatGPT, em 2015, e de outros oligarcas que, de certa forma, são rivais ou até mesmo inimigos de Musk. Então, há uma espécie de competição interna, marcada por muitos elementos de tensão entre eles. Além disso, veja a questão dos vistos para estrangeiros. É claro que o setor de tecnologia nos Estados Unidos quer empregar gente talentosa, quer importar engenheiros de todos os cantos. Eles desenvolvem tecnologia de ponta e precisam desses profissionais vindos de fora, mas Trump tem uma agenda muito mais nacionalista. Ele simplesmente não quer esses estrangeiros em cidades norte-americanas. Esses são alguns exemplos do tipo de tensão que se pode criar. Ainda assim, essas tensões são menos importantes do que a convergência objetiva. Eles têm interesses e objetivos em comum muito fortes e, por isso, algo dessa sintonia sempre prevalecerá. Veja o projeto de resgate da Argentina. Há uma pressão por influência política tanto por parte do governo (Trump prometeu um empréstimo de 20 bilhões de dólares para Javier Milei, em outubro) quanto de Musk (que brandiu no ar uma motosserra, ao lado do presidente argentino, num evento conservador em Maryland, em fevereiro). Eles intervieram na política argentina. Eles estão intervindo em campanhas eleitorais, prometendo grandes investimentos para Milei vencer eleições. É um caso bastante interessante de se observar.

Os chineses renovaram o modelo e reforçaram a primazia do Estado no controle do avanço tecnológico – Imagem: iStockphoto

CC: No Brasil, os norte-americanos tratam processos judiciais contra as grandes empresas de tecnologia como se fossem ações hostis contra os Estados Unidos enquanto Estado. O que isso indica?
GDE: Isso já existia, mas se tornou explícito agora. Nós sabíamos, ou ao menos suspeitávamos há muito tempo, que o governo dos Estados Unidos estava, de certa forma, pressionando para que as grandes empresas de tecnologia não fossem regulamentadas, para que elas pudessem se desenvolver sem quaisquer tipos de limites. Essas empresas eram vistas, há muito tempo, como uma extensão da influência geopolítica norte-americana. Não era algo declarado, não era uma política oficial do governo dos Estados Unidos, no entanto. Só mais recentemente é que passamos a ver isso se tornando explícito. Então, quem quer que seja – Brasil, União Europeia ou qualquer outro lugar –, quem quer que tente limitar o poder dessas grandes empresas, regular as mídias sociais, estabelecer algum tipo de responsabilidade, de prestação de contas ou de transparência, acabará se tornando automaticamente uma espécie de inimigo da segurança nacional norte-americana, ao menos de acordo com o que Trump e o vice dele, J.D. Vance, estão dizendo. Note que esse tem sido um processo muito longo. A convergência entre esse setor tecnológico e o poder político é algo que acontece há ao menos 30 anos. Agora, finalmente, está se tornando algo explícito e muito visível. E não acabou. Vai continuar se aprofundando ao longo dos próximos anos.

“O ponto em comum entre eles é o recurso às artimanhas para reduzir qualquer tipo de controle”

CC: O Brasil busca confrontar esses predadores de muitas maneiras. Mas, quando faz isso, o presidente Lula se associa a países como a Rússia e a China. Dentro da estrutura dos BRICS, os chineses e os russos não são exemplos de liberdade de informação, de liberdade de expressão. O que essa atitude brasileira indica?
GDE: Indica uma verdadeira dificuldade. O modelo norte-americano está evoluindo e é bastante claro como ele funciona. Depois vemos o modelo chinês, que é diferente. Lá, eles decidiram que, para preservar o poder do Partido Comunista Chinês, precisam restringir liberdades. Eles perceberam que essas ferramentas tecnológicas estavam se tornando poder político. Os chineses optaram por uma renovação do próprio modelo e colocaram até mesmo alguns integrantes da legenda na prisão, reafirmando a primazia do Estado e reforçando o temor que o Partido Comunista Chinês inspira ao longo das décadas. Então, entre esses dois modelos, é preciso ter um modelo digital democrático liberal, que tente regular a tecnologia, tornando-a compatível com o funcionamento das instituições democráticas, com o diálogo. Precisamos de um espaço público digital que seja compatível com o funcionamento do diálogo democrático, sem deixar de ser dinâmico e inovador. Mas não temos isso. O modelo europeu não é forte o suficiente, ao menos não nesse estágio de desenvolvimento. Então, o modelo europeu não exerce hoje a mesma atração que exerceu um dia. O que acontece agora é que todos os países estão tentando encontrar seu lugar, de uma forma que é ao mesmo tempo oportunista e derrotada. Estão tentando posicionar-se nesse meio e extrair algum valor do fato de estarem transitando em posições intermediárias entre diferentes grandes potências, mas é insuficiente. É muito preocupante porque não temos um terceiro modelo, basicamente. E é isso que deveríamos ter. •

Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Predadores digitais’

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