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A vida sob Milei

O intrigante autoflagelo dos argentinos 

A vida sob Milei
A vida sob Milei
Sem adversários à altura, Milei se equilibra no poder e seus trunfos têm sido muito menores do que ele afirma – Imagem: Emiliano Lasalvia/AFP
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Naquela manhã, na padaria Los Primos, Sandra estava chorando. Eu a vi tão aflita que perguntei se tinha ocorrido alguma desgraça.

“Os meninos, Martín. Os meninos”, ela conseguiu dizer.

“Aconteceu alguma coisa com seus filhos?”, perguntei, com medo.

“Não, felizmente não. Ontem à noite, as crianças da vizinhança estavam comemorando. Elas até soltaram fogos de artifício, como se fosse Natal. Elas não percebem? Não sabem que serão as vítimas? Não entendem que vão morrer de fome?”

E continuou chorando.

Sandra tem 54 anos e trabalha como empregada doméstica em casas de classe média num bairro de Lomas de Zamora­, município na zona sul da Grande Buenos Aires. Ela é casada com Miguel, caminhoneiro obrigado a se aposentar após um acidente e que agora faz bicos de eletricista, jardineiro e encanador. Eles têm três filhos e quatro netos.

Naquela manhã de segunda-feira 20 de novembro de 2023, Sandra chorava, pois, na véspera, os adolescentes de seu bairro, área muito modesta de trabalhadores e desempregados, tinham comemorado a vitória de Javier Milei no segundo turno das eleições contra o peronista Sergio Massa: 56% a 44%. Na Argentina, o voto é obrigatório a partir dos 18 anos e facultativo a partir dos 16. Muitos eleitores votaram pela primeira vez, exercendo seu direito democrático de eleger representantes, fascinados por aquele homem de 52 anos que gritava descontroladamente nos palcos como um astro do rock, agitando uma motosserra e vomitando slogans contra a “casta”. Ou seja, contra todos os políticos que não fossem ele próprio. Com a motosserra, Milei prometia cortar os gastos públicos porque, segundo dizia, “é dinheiro roubado pelos políticos corruptos”.

Quase ninguém percebeu a chegada do furacão, apesar dos sinais

Antes do primeiro turno, em 22 de outubro, os peronistas esperavam não enfrentar Milei, mas Patricia Bullrich, candidata do partido conservador PRO, ministra da Segurança no governo do presidente Mauricio Macri, de 2015 a 2019. Massa venceu o primeiro turno, mas ­Bullrich ficou em terceiro lugar. Milei terminou em segundo. “Não vimos que ele estava chegando”, era a frase repetida entre os integrantes do governo de ­Alberto Fernández e Cristina Fernández de ­Kirchner, empossado em 2019.

Havia, no entanto, sinais. Professores do ensino médio notavam a identificação de seus alunos com aquele político que prometia acabar com tudo que era velho.

A sociedade pensa, em geral, que os jornalistas sempre sabem de tudo. Não é verdade, claro, mas também temos parte da culpa por essa ideia errada. Quase nunca dizemos algo tão simples como “não sei”.

Cristina, minha mulher, é professora de História em várias escolas de ensino médio. “O que você sabe sobre Milei?”, me perguntou certa manhã de 2022, enquanto tomávamos o chimarrão. “Pouca coisa”, respondi. “É um economista ultraliberal cada vez mais exagerado. Ele grita e exige atenção. Não tem escrúpulos em criar escândalos ou maltratar uma jornalista mulher. Agora diz que segue a escola ­austríaca de Economia, a escola de ­Murray Rothbard, e que deveria haver liberdade para se comprar e vender órgãos. Como isso faz subir sua audiência na tevê, ele é convidado com mais frequência. E está ficando cada vez mais popular. Ele é financiado por um grande empresário, Eduardo Eurnekian, dono de aeroportos e empresas de energia. Foi assim que ele se elegeu para a Câmara dos Deputados em 2021. Mas tenho certeza que você sabe coisas mais interessantes do que tudo isso.”

“Sei que os alunos perguntam muito sobre ele, se identificam com ele quando critica os políticos. E vejo isso cada vez mais, até mesmo em escolas dos bairros mais pobres. Os adolescentes são filhos e netos de peronistas, mas nem sequer falam de Perón ou de Eva Perón. Falam de Milei. Chegam até a imitá-lo.”

Quatro anos após ser eleito deputado, dois anos depois de ganhar a Presidência de um país de 47 milhões de habitantes, Milei conserva boa parte desse poder de identificação e continua a ser o veículo do cansaço de uma parte da população com a liderança política que governa a Argentina desde a restauração da democracia, em 10 de dezembro de 1983.

Nas últimas eleições legislativas nacionais, em 26 de outubro, seu partido de extrema-direita, La Libertad Avanza (A Liberdade Avança), obteve 40% dos votos, contra 35% do peronismo e aliados. Milei e sua equipe, então, habilmente apresentaram essa vitória por 40% a 35% como se tivesse sido por 80% a 20%, e começaram a cooptar legisladores. Na Câmara dos Deputados, serão a maior minoria e conseguirão atingir o quórum.

Tudo isso ocorre em meio a uma conjuntura econômica de feroz austeridade fiscal, a famosa “motosserra”, paralisação completa de projetos de obras públicas de infraestrutura e saneamento, desfinanciamento de universidades, que são gratuitas na Argentina, perda de 200 mil empregos, principalmente em setores como a construção civil, e crescimento da economia informal. Somam-se a isso episódios de corrupção, como o da ­$Libra, criptomoeda criada por Milei durante sua Presidência que levou a uma investigação por suposta fraude, pois alguns investidores lucraram inicialmente e depois fizeram o resto perder. Ou casos como o da agência para pessoas com deficiência, que não só cortou as pensões de milhares de beneficiários, mas se tornou um antro de suborno e enriquecimento de funcionários públicos.

Os aposentados não saem das ruas e recebem tratamento de choque da polícia – Imagem: Catriel Gallucci Bordoni/NurPhoto/AFP

Se apenas duas razões tivessem de ser escolhidas para explicar o fenômeno de um direitista radical que faz ajustes e, ainda assim, não recebe punição, poderiam ser estas:

Num país que sofreu duas vezes o trauma da hiperinflação, em 1989 e 1990, e que atingiu um aumento anual de preços de 143% em outubro de 2023, data das eleições, Milei prometeu reduzir a inflação e cumpriu a promessa. Atualmente, o índice acumulado é de 25%, e os economistas estimam que terminará o ano em 30%. Uma loucura para o Brasil. Um alívio para a Argentina.

O segundo motivo é político. O peronismo não se apresenta como uma opção atraente e competitiva. Critica a situação atual em detalhes, mas não é visto como uma alternativa viável. Tampouco oferece propostas que vão além das promessas genéricas de um Estado mais atuante, com ênfase na industrialização e geração de empregos. E, para piorar a situação, atualmente carece de uma liderança unificada. Cristina Kirchner está em prisão domiciliar após uma condenação por suposto suborno na província de Santa Cruz, no sul do país. O argumento do promotor e dos juízes, fortemente influenciados por Macri, é de que, como presidenta, ela não poderia desconhecer a situação. Seus advogados classificam o argumento como “fascista”. A verdade é que, além de sua situação legal, que também a impede de ocupar cargos públicos e de se candidatar, CFK mantém um núcleo peronista linha-dura de cerca de 20%, mas não é mais a líder incontestável do movimento criado por Juan Perón há 80 anos, em 1945.

A figura emergente no peronismo é Axel Kicillof, governador da província de Buenos Aires, onde vivem 17 milhões dos 47 milhões de habitantes da Argentina, responsável por metade do PIB industrial do país e o maior produtor agrícola. Economista de 54 anos e ex-ministro de Cristina Kirchner, Kicillof desafiou sua antiga mentora e costuma dizer que o peronismo “precisa cantar uma nova canção”. Mas, ao menos por enquanto, ele ainda não é o líder incontestável dos peronistas, embora os dirigentes do partido reconheçam sua honestidade e sua capacidade de administrar um estado gigantesco, apesar de o governo federal ter deixado de repassar 11 bilhões de dólares em verbas para a província.

Num país historicamente orgulhoso de sua numerosa e culta classe média, os mecânicos são um bom indicador da situação.

“A prevenção acabou”, diz Pablo, um jovem especialista que fez vários cursos de eletrônica automotiva. “Ninguém mais traz o carro para revisão. Só vêm quando algo quebra e o problema os impede de usar o carro. Mesmo assim, muita gente votou nele, não é?”

Os argentinos vão mal, mas estão resignados

Não é preciso dizer o nome.

“E por que eles dizem que continuam votando em La Libertad Avanza?”

“Todo mundo diz que está indo mal, mas eles mesmos dizem que já se esforçaram por dois anos e não querem jogar esse esforço fora.”

“Isso se chama esperança.”

“Talvez”, diz o mecânico. “Mas não pense que eles estejam demonstrando euforia. Parecem resignados, na verdade. Alguns têm dinheiro até o dia 20 do mês e explicam, preocupados, que ficariam em situação pior se durasse apenas até o dia 15.”

A Argentina é um país peculiar. As pesquisas revelam que Donald Trump tem 65% de desaprovação. Mas os candidatos de Milei venceram as últimas eleições legislativas graças ao apoio do presidente dos Estados Unidos. Quando os libertários perderam as eleições estaduais em Buenos Aires por 14 pontos porcentuais,­ em 7 de setembro, Trump e seu secretário do Tesouro, Scott Bessent, se reuniram com Milei. O republicano declarou publicamente que, se o aliado fosse derrotado em outubro, “os argentinos iriam morrer”. Seria uma forma de incentivo, de ameaça ou ambos? Dias depois dessa declaração, ele anunciou mais empréstimos e neutralizou o outro grande temor dos argentinos, além da inflação, a desvalorização do peso em relação ao dólar. Trump pode ser ruim e não querer nossa soberania, mas a desvalorização é pior, pareciam pensar os eleitores. Milei quer destruir o Mercosul e congelou as relações com o Brasil, insistindo que a Argentina deve alinhar-se apenas com dois países, Israel e Estados Unidos.

Sandra e Miguel continuam trabalhando. Para eles, um churrasco é uma utopia, assim como para os adolescentes que soltavam fogos de artifício. Mas os jovens, ao contrário de Miguel e Sandra, que vivenciaram todas as crises da Argentina e sabem como é um governo ultraconservador, ainda não perderam a esperança de que um dia, como por mágica, todos estarão melhores, Deus proverá e, quem sabe, a Argentina ganhará sua quarta Copa do Mundo no próximo ano. •


*Colunista do jornal Pagina/12, diretor do site “Y ahora qué” e comentarista do canal de tevê QR.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A vida sob Milei’

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