Mundo
O ódio dá voto
Os extremistas transformaram o combate ao estrangeiro em bandeira eleitoral, diz Andrew Selee
Um dos mais respeitados estudiosos do fenômeno da migração, presidente do Migration Policy Institute, sediado em Washington, Andrew Dan Selee afirma que o fenômeno traduz disputas de identidade e resistência econômica. Segundo ele, as mesmas forças que agitam os EUA e a Europa ressoam, em outros tons, na América Latina. Um bate-papo indispensável para quem deseja entender o futuro das migrações no século XXI.
CartaCapital: Como o senhor avalia o endurecimento das políticas migratórias tanto nos Estados Unidos quanto em países da América Latina e Europa?
Andrew Selee: Varia muito de um lugar para outro. Na América Latina, a discussão é mais pragmática, mas o que a gente viu crescer na Europa e nos Estados Unidos foi um debate real sobre identidade, sobre se há imigração demais e se isso tem mudado a identidade nacional. Três fatores se cruzaram tanto nos EUA quanto na Europa. Primeiro, a batalha pela identidade e a sensação de que os países mudavam rápido demais, perdendo um certo senso de herança, algo que atinge talvez 25%, 30% da população nos EUA. Depois, há o grupo que se preocupa com uma imigração ordenada, que basicamente quer saber se existem regras claras e processos. E um terceiro grupo, mais preocupado com o futuro econômico, que vê os imigrantes como uma possível ameaça. Esses grupos se sobrepõem, mas não são os mesmos e isso está na raiz de grande parte do medo em relação à imigração. Os partidos que tratam a imigração como ameaça à identidade nacional são, em geral, os que conduzem essa conversa. Dá para ver na França, na Alemanha, no Reino Unido e nos EUA. E atraem eleitores preocupados apenas com o controle das fronteiras, com quem entra no país, e trabalhadores inseguros com o futuro de seus empregos.
No mundo, partidos que tratam a imigração como ameaça à identidade nacional impõem a pauta
CC: Nos Estados Unidos alguns governos progressistas adotaram políticas para proteger imigrantes, limitando a cooperação entre autoridades locais e federais. Essas políticas são eficazes diante da pressão federal por deportações em massa?
AS: Neste momento, a forma como as autoridades federais, nos EUA, conseguem identificar e deportar depende basicamente da cooperação com as forças policiais locais. Qualquer cidade entrega um assassino, claro, depois que ele cumpre a pena, mas muitos estados e cidades, em geral, democratas, embora não só, decidiram que não vão cooperar com a polícia de imigração, o ICE. Por isso, o governo Trump passou a fazer campanhas em lugares como Washington, Nova York, Chicago e Los Angeles. Eles procuram compensar por meio do envio de mais agentes do ICE e de outras forças federais, numa tentativa de aumentar os números, mas, sinceramente, ainda é muito difícil deter grandes quantidades de imigrantes sem o apoio das autoridades locais. Fizemos um estudo a respeito em 2017, no primeiro governo Trump, e ficamos realmente surpresos ao ver o quanto o ICE depende dessa cooperação para conseguir resultados. O auge das deportações durante os governos George Bush e Barack Obama coincidiu com o programa “Comunidades Seguras”, que checava o status migratório de qualquer detido pela polícia. Foram em torno de 250 mil por ano. Sem essa colaboração, o governo Trump vai tentar montar um sistema capaz de localizar migrantes sem documentos, interligando bancos de dados para identificar quem usa número de previdência emprestado ou tem visto vencido. Eles provavelmente vão chegar lá, mas ainda não chegaram.
CC: Trump está realmente mais agressivo nessa questão da imigração?
AS: Muito mais agressivo. Não se trata só de fechar a fronteira ou de ir atrás de criminosos, agora é realmente sobre perseguir qualquer um que esteja em situação irregular, mas não só. Em grande parte, claro, são migrantes sem documentos, mas também envolve aqueles com status legal. Hoje, a conversa é sobre quem realmente “merece” ficar. Não existe mais aquele senso de que imigrantes têm a mesma proteção para se expressar como os cidadãos norte-americanos. E essa é uma diferença bem significativa, e está diretamente ligada à questão da identidade.
CC: Qual a maior prova do Migration Policy Institute neste momento?
AS: Neste momento, fazemos muito pouco, pois, sinceramente, não parece que o governo Trump esteja interessado em reformar o sistema de imigração de forma que beneficie a sociedade como um todo. No primeiro mandato havia uma abertura maior. Naquela época, o governo demonstrava interesse em reformar a imigração legal. Desta vez, não vemos isso. Atualmente, há uma queda de cerca de 20% no número de estudantes internacionais. E o governo quer mudar o visto profissional, o H-1B, para cobrar uma taxa de 100 mil dólares, o que vai restringir muito quem pode candidatar-se. A agenda é guiada por gente preocupada com essa ideia de “mudança da identidade americana”. Nós, por outro lado, acreditamos que o país sempre se beneficiou da imigração. Ele muda com quem chega, é claro, mas avança. Felizmente, continuamos a atuar globalmente e seguimos com bastante trabalho.
A Europa fecha as portas para os imigrantes, africanos em particular. A América Latina entra na onda – Imagem: Nelson Almeida/AFP
CC: E o Brasil vem se transformando em um país predominantemente de emigração para um destino de migrantes regionais e de refugiados. O que pode ser feito para evitar cair na mesma situação dos EUA?
AS: O desafio é acompanhar de perto a opinião pública, entender o nível de conforto da sociedade com essas mudanças e monitorar os números. No longo prazo, tudo se ajusta, mas, se o processo anda rápido demais e o apoio popular se perde, é difícil dar um passo atrás e consertar as coisas. Por isso, para países como o Brasil, onde a imigração ainda não virou um tema politizado e a maioria aceita bem a presença de imigrantes, é importante manter esse equilíbrio.
CC: A migração climática vem ganhando espaço na agenda global. Quais políticas públicas o senhor considera urgentes para enfrentar esse fenômeno de forma humana e sustentável?
AS: Há duas dimensões quando falamos de migração climática. A primeira diz respeito àqueles que enfrentaram emergências específicas, um furacão, um tsunami, uma seca severa, algo pontual. Nesses casos houve alguns avanços para reconhecer quem foge de desastres climáticos como deslocado. A segunda é mais complexa: o que fazer em regiões do mundo nas quais as mudanças no clima são estruturais e de longo prazo, e a vida tem se tornado cada vez menos sustentável? É o caso da região do Sahel, na África, em partes do chamado “corredor seco” da América Central e no Caribe. Sinceramente, não sei se há uma resposta simples, mas precisamos pensar em estratégias para mitigar os efeitos. Permitir que alguns se desloquem em seus próprios países, que outras possam migrar para fora, e criar condições para reconstruir meios de vida viáveis. Não existe uma única solução, mas uma combinação de ações para que não se transforme numa nova fonte de instabilidade e, inevitavelmente, afetar outros países.
Nos EUA, trata-se agora de dizer quem “merece” ficar no país
CC: Quais tendências vão definir o debate sobre migração global? E quais os principais desafios para formular políticas eficazes num cenário tão multifacetado?
AS: Estamos diante de duas forças muito diferentes em choque. De um lado, há uma mudança demográfica importante. Muitos países estão envelhecendo e todos eles vão precisar de migrantes. Ao mesmo tempo, a imprevisibilidade dos fluxos migratórios, causada por fatores como tecnologia e mudanças climáticas, leva esses mesmos países a se tornarem mais resistentes à entrada de estrangeiros. E isso gera uma reação política e social de rejeição à imigração. O que veremos, acredito, é um embate entre essas duas forças e não sei exatamente como vai se resolver. Provavelmente, de maneiras diferentes em lugares diferentes. Países como Alemanha e Itália têm tentado ser mais duros com a imigração irregular, mas mais abertos à imigração legal. A Espanha tem apostado mais em ampliar os canais de imigração regular e Portugal reduziu recentemente um pouco essa entrada. Em geral, ambos continuam relativamente abertos à imigração legal porque precisam de trabalhadores, mas investem muito em conter a imigração irregular, especialmente vinda da África. Não tenho certeza de que a maioria vai encontrar o ponto de equilíbrio e receio que, em vez de consenso, vejamos mais conflito e mais politização do tema migratório nos próximos anos.
CC: O Brasil e a América Latina têm algum diferencial?
AS: Ah, sim. O Brasil tem conseguido lidar muito bem com essa questão da imigração até agora, e tem sido realmente inteligente nesse aspecto. Há alguns outros países que também acertam, mas o Brasil, em particular, está no caminho certo. A maioria dos países da América Latina tem evitado transformar o tema em uma bandeira política e garantem que os estrangeiros estejam no país de forma legal, independentemente de como chegaram. E, entre todos, o Brasil é o mais organizado nesse sentido. Existem outros exemplos positivos, como o Canadá e a Austrália, mas o Brasil é, de fato, impressionante no modo como tem gerido suas políticas migratórias. Parte disso tem a ver com a capacidade institucional que o País possuía. Há uma estrutura que vem de muito tempo – lá atrás, Brasil, Argentina e Uruguai receberam grandes ondas migratórias, e acabaram preservando alguma base institucional desses períodos, mesmo quando o fluxo diminuiu. Então, quando a imigração voltou a crescer, o Brasil tinha uma estrutura administrativa preparada para responder, o que fez toda a diferença. Outros países, como Colômbia, Equador e Peru, precisaram construir essas instituições praticamente do zero – e até têm conseguido se sair bem, mas isso tem exigido muito esforço e adaptação rápida. Sabe, uma política importante adotada pelo Brasil é que o país tenta, especialmente no caso dos venezuelanos, direcionar os migrantes para regiões onde há oportunidades de trabalho. Como em quase toda a América Latina, o Brasil é uma sociedade que envelhece, então levar os migrantes para onde há vagas de trabalho e demanda tem sido uma política muito inteligente. Até agora, tem dado muito certo. •
Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O ódio dá voto’
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