CartaCapital
Não é desvio, é método
A violência como instrumento de controle dos corpos femininos
Agredida com 61 socos pelo namorado em um elevador. Baleada com seis tiros pelo ex, enquanto fritava pastéis no trabalho. Pernas amputadas após ser atropelada e arrastada por um quilômetro pelo ex-companheiro. Morta ao lado dos quatro filhos depois de o marido incendiar a casa. Esses são apenas alguns casos recentes de feminicídio e de tentativas de feminicídio noticiados pela imprensa que chocaram a opinião pública e indicam um crescimento da violência. Casos que escancaram não apenas a brutalidade dos crimes, mas a naturalização do ódio contra mulheres em uma sociedade estruturada pela desigualdade de gênero.
Os números confirmam essa escalada. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024 registrou o maior número de feminicídios da história: 1.492 assassinadas simplesmente por serem mulheres. Trata-se de um número subestimado, dadas as dificuldades de tipificação. As tentativas de feminicídio cresceram 19,4%, totalizando 3.870 vítimas que sobreviveram por pouco. Entre elas Tainara, que terá de aprender a viver sem as pernas por ter tido a “ousadia” de conversar com outro homem em um bar.
Outra pesquisa divulgada em 2025 buscou dar visibilidade às mulheres que permanecem invisíveis nas estatísticas policiais. No relatório Visível e Invisível, a Vitimização de Mulheres no Brasil, os dados são avassaladores: 37,5% das brasileiras relataram ter sofrido algum tipo de violência no último ano, maior porcentual desde o início da série histórica, em 2017. Isso equivale a mais de 23 milhões de mulheres. A maioria foi agredida por parceiros ou ex-parceiros, com crescimento expressivo de violências graves que são fatores preditivos do feminicídio, como espancamento e stalking. Mas, talvez, o dado mais cruel revelado pela pesquisa seja o silêncio coletivo: 9 em cada 10 mulheres afirmaram que alguém presenciou a violência sofrida. Ainda assim, o socorro quase nunca veio.
Em uma nação na qual, por séculos, meninas e mulheres foram tratadas de forma desigual pela lei, não surpreende que uma das formas mais evidentes da discriminação e da misoginia ainda seja a violência. Até 1962, mulheres casadas nem sequer podiam ter conta bancária ou receber herança sem autorização dos maridos. Não custa lembrar que, no país do samba e do futebol, mulheres foram proibidas de jogar bola profissionalmente até 1979. O corpo feminino sempre foi um terreno de controle.
O ordenamento jurídico destinado à proteção da mulher é recente em nosso país. Apenas em 2006 o Brasil aprovou a Lei Maria da Penha, fruto de uma condenação internacional pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que responsabilizou o Estado por negligência no caso da biofarmacêutica que ficou paraplégica após ser baleada pelo marido dentro de casa. Embora a violência tenha ocorrido em 1983, o agressor só viria a ser preso em 2002.
Em 2015, o feminicídio passou a ser tipificado como crime de ódio em razão do gênero feminino. Em 2024, uma nova mudança legislativa transformou-o em crime autônomo e ampliou a pena para até 40 anos, a maior prevista no Código Penal. Ainda assim, em 2023, o STF precisou declarar inconstitucional a tese da “legítima defesa da honra”, usada durante décadas para absolver homens que mataram mulheres por ciúmes, traição ou abandono. A decisão escancarou uma face menos visível, porém estrutural, da violência: sua legitimação social.
Quase 40% das mulheres relatam ter sofrido algum tipo de agressão no período de um ano
Estamos diante de um desafio quase civilizatório. De um lado, avanços legais que não conseguem traduzir-se em proteção real e, de outro, homens que seguem a tratar as suas parceiras como objeto e propriedade, reproduzindo assimetrias que parecem antiquadas, mas são diariamente reforçadas, inclusive no ambiente digital. Mulheres morrem por desejarem se separar, trabalhar, circular, ter opinião, viver sem medo.
Não por acaso, a série Adolescência, fenômeno do streaming neste ano, parte do feminicídio de uma adolescente cometido por um colega da escola de 13 anos radicalizado nas redes sociais, num universo misógino digital no qual a afirmação masculina depende da eliminação da mulher. Imerso em conteúdos que exaltam a submissão feminina, o personagem é o exemplo extremo de como a misoginia circula, sem freio, insuflando discursos de ódio que não apenas moldam negativamente personalidades, mas alimentam financeiramente influenciadores e plataformas, cujos algoritmos funcionam como verdadeiros aceleradores da violência contra a mulher.
Esse fenômeno é global e se aprofunda num contexto em que pesquisas apontam um abismo crescente entre mulheres e homens jovens. Enquanto elas se tornam cada vez mais liberais e progressistas, eles são, em média, mais conservadores e radicais do que os próprios idosos, frustrados com as expectativas não realizadas de mobilidade social e inseguros com as mudanças do papel masculino. Trata-se de um dos sintomas da ascensão da extrema-direita no mundo, que elegeu a igualdade de gênero como inimiga número 1 a ser combatida.
Há, portanto, um componente político central nessa escalada. Vivemos, na última década, um contexto marcado por retrocessos democráticos, radicalização dos discursos públicos e desmonte de políticas sociais. Não é coincidência que os dados de violência contra mulheres explodam justamente nos anos em que se naturalizaram declarações misóginas, ataques a direitos, cortes no financiamento de políticas de proteção e a degradação do debate público. Violência política gera violência doméstica, não como metáfora, mas como evidência empírica.
A literatura internacional é farta ao demonstrar que ambientes marcados por autoritarismo, discursos de ódio e lideranças truculentas ampliam a incidência da violência contra mulheres. Quando autoridades dizem que mulheres exageram, mentem, provocam ou merecem, o agressor se sente autorizado. O privado nunca esteve tão ligado ao público. O velho slogan feminista – o pessoal é político – nunca foi tão verdadeiro.
O feminicídio não é um desvio. Ele é método. É instrumento de controle sobre o corpo feminino. E continuará a ser enquanto o Estado falhar em proteger, a sociedade insistir em tolerar e o ódio seguir encontrando palanque, audiência e aplauso. •
*Diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e coordenadora do mestrado profissional em gestão e políticas públicas do IDP.
Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Não é desvio, é método’
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