CartaCapital
“Lugar de fala”
Urge discutir o identitarismo com honestidade
O debate sobre o identitarismo é um campo minado. A cada passo, é necessário apresentar ressalvas e explicações. Toda palavra é disputada e há muito pouca boa vontade de entender os argumentos colocados na mesa. Qualquer crítica é passível de ser considerada como prova de conservadorismo ou de desprezo pelas lutas das mulheres, da população negra ou de gays, lésbicas e travestis. Por isso, muita gente prefere calar-se.
Não é à toa. O identitarismo opera com uma lógica de silenciamento do debate fundada em falsas premissas: uma interpretação do “lugar de fala” como ferramenta de censura e a ideia de que qualquer crítica a seus pressupostos ou às suas práticas significa uma oposição às reivindicações emancipatórias de grupos oprimidos.
Para entendê-lo, é necessário discutir o sentido da palavra. Faz muito tempo, o termo “identitário” é aplicado a movimentos de direita (supremacismo branco, sionismo, nacionalismo xenófobo, fundamentalismo religioso), que não escondem a percepção de que pertencimentos grupais bloqueiam qualquer horizonte de igualdade e uma sociedade inclusiva é inviável. Mais recentes, as políticas de identidade à esquerda surgem do reconhecimento dos múltiplos padrões de opressão vigentes e se propõem alcançar uma igualdade qualificada pelo respeito às diferenças. Diluídas numa prática militante pouco informada, produziram, porém, o que os muitos críticos também à esquerda, sejam eles de corte marxista ou liberal, veem como um tipo de intolerância progressista – o que é chamado “identitarismo”.
Criticá-lo não é afirmar que as lutas de tantos grupos marginalizados são desimportantes ou secundárias. Confundir a desaprovação à deriva identitarista com a condenação dos movimentos emancipatórios dos quais ele busca apropriar-se é a manobra do próprio identitarismo para impedir a discussão de seus limites. Como se essa discussão implicasse defender privilégios ou indicasse o desejo de uma volta ao passado, a uma esquerda sensível apenas à desigualdade material ou à opressão de classe.
A crítica ao identitarismo é uma maneira específica de enquadrar a luta emancipatória que faz de cada identidade uma “essência”, negando o caráter histórico e conflitivo de sua fixação. Que recusa a possibilidade de diálogo e construção coletiva, isolando cada um em seu grupo fechado e reificando o pertencimento a esse grupo. E, sobretudo, que objetiva uma acomodação na ordem (neo)liberal, com a abertura de nichos de privilégio para uns poucos integrantes do grupo dominado e a evasão de qualquer enfrentamento mais sério com as estruturas do capitalismo.
Criticá-lo não é afirmar que as lutas de tantos grupos marginalizados são desimportantes ou secundárias
O identitarismo não é a expressão desencarnada de algum espírito do tempo. É levado a cabo por agentes interessados, que obtêm vantagens materiais e simbólicas nada desprezíveis, respondendo a incentivos muito claros oferecidos a quem se dispõe a essa “rebeldia” dentro e a favor do sistema. Muitos hoje já apontam a relação entre identitarismo e neoliberalismo, mas isso apenas diz o óbvio. Espinhoso é discutir os mecanismos pelos quais movimentos de índole inicial emancipatória são cooptados para uma posição, ao fim e ao cabo, reacionária – e, no mesmo passo, instrumentalizados para o benefício privado de seus porta-vozes autoinstituídos.
Nas leituras identitaristas, a aspiração à universalidade aparece como nociva e enganosa – não parte necessária de qualquer projeto político emancipador, ao incluir a promessa de libertar cada um de nós das nossas particularidades, isto é, das nossas identidades, que só se constituem em marcadores importantes porque refletem as estruturas de dominação e nos aprisionam nelas. Sem a proposta de uma universalidade real, resta apenas o projeto de dar a cada um a chance de, com sorte, melhorar a própria posição no mundo desigual em que nos encontramos.
A discussão é difícil porque, partindo de uma compreensão simplista e enviesada do “lugar de fala”, o modus operandi identitário é bloquear o debate. Qualquer tentativa de discutir seu enquadramento teórico e conceitual é impugnada, sob acusação de preconceito ou conservadorismo. Assim, construções discursivas no mínimo frágeis, como “racismo estrutural”, ganham foro de verdade absoluta em círculos progressistas, mas, sem a indicação de um sentido minimamente sólido para o que se entende por “estrutura”, é só uma forma chique de dizer que o racismo se manifesta de múltiplas formas. Afirmar a materialidade do sexo biológico é suficiente para ganhar uma acusação de “transfobia”, quando não um processo judicial.
No ambiente acadêmico, campanhas de cancelamento, difamação e pressão sobre a comunidade universitária levam a uma situação paradoxal. Militantes buscam a impugnação do método científico e mesmo do raciocínio lógico como “eurocêntricos” ou “patriarcais”. Qualquer bobagem pode ser alçada à condição de “nova epistemologia” e, a partir daí, ganha o status de algo que não pode ser criticado de fora (uma aplicação marota da ideia de incomensurabilidade dos paradigmas científicos de Thomas Kuhn). A ideia de que as demandas emancipatórias se beneficiam da pesquisa rigorosa e do desvelamento da realidade cede lugar à noção de que é preciso garantir a intocabilidade de qualquer teoria ou até de “dados” que pareçam apoiar determinadas demandas. É a versão “progressista” da pós-verdade.
O resultado é uma crescente perda de legitimidade social dos espaços e saberes acadêmicos. No momento em que a extrema-direita tem como prioridade reduzir a validade do capital cultural, ampliando o domínio do capital econômico sobre toda a vida social, os excessos do identitarismo mostram-se objetivamente aliados dessa empreitada.
O identitarismo não é irrelevante, não é um incômodo lateral nas tretas virtuais, um ruído de fundo que não interfere nas disputas reais. Ele afeta a capacidade que a esquerda tem de enfrentar os desafios do presente e faz uma tabelinha com a extrema-direita, em que os dois (e apenas os dois) saem ganhando. Por isso, é urgente discuti-lo e enfrentá-lo. •
*Professor titular livre de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdade (Demodê).
Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘“Lugar de fala”’
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