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Sem conter o uso de combustíveis fósseis, nada vai deter o aquecimento global, lembra Suely Araújo

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Imagem: iStockphoto
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Coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama, Suely Araújo elogia os esforços do governo em conter o desmatamento e a atuação da diplomacia brasileira na presidência da COP30, a conferência do clima realizada em Belém, mas aponta uma contradição. “O Brasil não pode, ao mesmo tempo, querer ser um importante líder climático e aumentar, e muito, a produção de petróleo”, afirma a ambientalista nesta entrevista ao repórter Maurício Thuswohl.

CartaCapital: A média das temperaturas nos últimos três anos superou o limite de 1,5 grau Celsius estabelecido pelo Acordo de Paris. Estamos em um caminho sem volta?
Suely Araújo: Limites planetários foram ultrapassados, mas temos de acreditar que conseguiremos ao menos reduzir o problema e assegurar condições de vida para as futuras gerações. Garantir isso requer medidas concretas quanto à oferta e uso dos combustíveis fósseis, que com certeza são o grande vilão do aquecimento global. Muito se fala e pouco se faz nessa perspectiva. No Brasil, temos resultados importantes nas políticas em curso de controle do desmatamento, nossa principal fonte de emissão de gases de efeito estufa, mas, contraditoriamente, estamos aumentando a exploração e produção de petróleo de forma significativa e, na contramão, ampliamos os benefícios para as térmicas movidas a carvão mineral. Essas e outras contradições no setor de energia têm de acabar se a intenção é realmente formular nacionalmente um mapa do caminho para reduzir a dependência dos combustíveis fósseis, como afirmou o presidente da República. Precisamos também de ajustes no Plano Clima, ainda em finalização pelo governo. O plano setorial de energia está muito fraco e não lida como deveria com o tema combustíveis fósseis.

“Os subsídios têm de ir para a transição energética, não para a cadeia de petróleo”

CC: A discussão sobre o abandono do uso de combustíveis fósseis foi mais uma vez adiada. É possível tornar essa pauta mais efetiva em 2026?
SA: Efetivar essa pauta é vital para o futuro da humanidade. O planeta tem mostrado os resultados de nossos fracassos nesse tema com a ocorrência de eventos extremos cada vez mais frequentes e intensos. É muito importante melhorarmos a resiliência para o enfrentamento dos eventos extremos, mas temos de manter o foco na redução das emissões de gases de efeito estufa. Não podemos continuar a empurrar com a barriga as decisões de reduzir a oferta e o uso dos combustíveis fósseis, bem como de eliminar os subsídios gigantescos que o setor recebe, no Brasil inclusive. Os subsídios têm de ir para a transição energética, não para a cadeia de petróleo.

CC: Qual a sua avaliação sobre a COP30?
SA: A COP30 teve alguns problemas de infraestrutura, mas Belém e seus habitantes receberam todos de maneira muito generosa. Entre os produtos da conferência, destaco o documento sobre adaptação às mudanças climáticas. Conseguiu-se listar indicadores importantes que balizarão as ações nesse campo. Na COP30, a adaptação deixou de ser secundária nos debates, equiparando-se à mitigação. É importante destacar que a proposta da Presidência brasileira de colocar em discussão o mapa do caminho para o fim do uso dos combustíveis fósseis, embora não acatada por todos os países, precisa ter sua relevância reconhecida. O tema voltou à mesa de negociações, e isso não é pouco.

CC: O modelo de decisões por consenso das COPs ficou caduco e não atende à urgência do enfrentamento às mudanças climáticas?
SA: Esse modelo não se aplica apenas às conferências do clima, é usado em muitas situações na ONU. Em clima, ele tem gerado contínua postergação de decisões relevantes, uma demora incompatível com a gravidade da crise climática. Isso está muito claro. Mas não dá para abandonar o modelo sem saber o que vai ser colocado no lugar.

CC: Quais as expectativas em relação ao encontro global “paralelo” em abril na Colômbia?
SA: O encontro vai colocar em destaque a necessidade de medidas concretas, efetivas, de afastamento dos combustíveis fósseis. Torço para que se consiga ampla adesão e se consolide um movimento internacional forte.

Abandonar o uso de fósseis é “vital para o futuro da humanidade” – Imagem: Daisy Serena/Observatório do Clima

CC: Qual o balanço desses três anos de governo Lula no que diz respeito às políticas ambientais?
SA: O governo tem feito avanços importantes na prevenção e no controle do desmatamento. A equipe da ministra Marina­ Silva e, com destaque, o Ibama, exibem resultados efetivos. Essas conquistas geram benefícios diretos para a questão climática. Há, contudo, contradições. O Brasil não pode, ao mesmo tempo, querer ser um importante líder climático e aumentar, e muito, a produção de petróleo. Em 2024, fomos o oitavo maior produtor de petróleo do mundo e informações divulgadas mostram que ultrapassamos essa posição em 2025. Um pouco mais da metade desse óleo é exportada, ou seja, a preocupação não é com a demanda interna. O mapa do caminho nacional proposto pelo presidente tem de abranger e enfrentar esse ponto. A justificativa de que a renda petroleira vai financiar a transição energética tem limites. Não se pode aumentar continuamente o problema que a transição energética precisa resolver.

CC: Qual a estratégia para evitar, no ano que vem, a confirmação do desmonte das regras de licenciamento ambiental no Brasil?
SA: Articulamos com partidos políticos uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra vários pontos da Lei Geral do Licenciamento Ambiental que será protocolada ainda em dezembro. A aprovação dessa lei, que privilegia uma tríade de várias isenções de licenciamento, o autolicenciamento de empreendimentos de pequeno e médio impacto e o licenciamento monofásico para empreendimentos de significativo impacto, configura uma verdadeira tragédia. Destruíram o licenciamento ambiental. Além dos processos no STF, certamente serão movidas ações judiciais contra empreendimentos aprovados por meio da aplicação dessas novas regras. A judicialização será intensa em todo o País.

CC: Com o perfil e postura antiambiental do Congresso a coisa pode ficar ainda pior em 2026?
SA: Infelizmente, pode ficar pior. O primeiro semestre dos anos eleitorais costuma ser marcado por pressões intensas para aprovação de Projetos de Lei de interesse eleitoral dos parlamentares, muitas vezes com teor antiambiental. Teremos muita luta pela frente, para barrar mais retrocessos e mostrar ao eleitor como o Congresso tenta permanentemente destruir nossa legislação ambiental e as políticas públicas nesse campo. Os parlamentares com esse tipo de postura, a maioria, têm de ser afastados pelas urnas. •

Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Fundo do poço’

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