Economia

assine e leia

Faça o pix

Em vez de assumir o controle da ex-Eletrobras, o governo Lula contentou-se com os bilionários dividendos da empresa

Faça o pix
Faça o pix
Caminho livre. A companhia vendeu sua participação na Eletronuclear para a Âmbar Energia, de Joesley Batista – Imagem: Suamy Beydoun/Agif/AFP e Redes Sociais
Apoie Siga-nos no

A Eletrobras, rebatizada de Axia Energia desde outubro com o objetivo de deixar para trás o passado estatal, embalou um presente de Natal de 39 bilhões de reais para seus acionistas. A intenção é fugir do imposto sobre dividendos que vai vigorar a partir de janeiro, uma manobra preparada por outras companhias também. “Indecência”, avaliou a ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, ao comentar a malandragem. No caso da Eletrobras­, é o coroamento perfeito para 2025. Durante o ano, seus sócios privados não só arrancaram do governo um acordo sobre divisão interna de poder classificado de “constrangedor” por um juiz da mais alta Corte. Conseguiram ainda que o lulismo se rendesse à lógica neoliberal de curto prazo e aceitasse que a função da maior empresa de energia da América Latina é dar lucro, e ponto final. Nada de exercer qualquer papel estratégico.

A Axia distribuiu 8,3 bilhões de reais em dividendos aos donos de ações neste ano. Nas duas vezes em que deliberou a respeito, uma em agosto, outra em novembro, o conselho de administração foi unânime. Os três indicados do governo no colegiado – Mauricio Tolmasquim, Nelson­ Hubner e Silas Rondeau – apoiaram a decisão. Cada um deles recebe cerca de 1,4 milhão de reais anuais em proventos pelo cargo de conselheiro. O Tesouro Nacional embolsou cerca de 2 bilhões daqueles dividendos. E ficaria com uns 10 bilhões do presente natalino, faltava saber se o governo votaria a favor da distribuição dos 39 bilhões. A decisão seria tomada em uma assembleia geral de acionistas em 19 de dezembro, um dia após a conclusão desta reportagem. Rumores em Brasília apontavam para voto contrário por parte da União e a possibilidade de esta recorrer à Justiça, caso saísse derrotada. Às vésperas da assembleia, dirigentes da Axia tinham se reunido com o ministro da Casa Civil, Rui Costa, no Palácio do Planalto.

O governo tem 45% do capital total da ex-Eletrobras, sendo 41% das ações com direito a voto e 13% das demais. Um terço dos papéis pertence a estrangeiros. Pela lei da privatização da empresa, qualquer acionista tem, no máximo, 10% dos votos nas deliberações internas, independentemente da quantidade de papéis que possua. Essa camisa de força foi contestada no Supremo Tribunal Federal, em 2023, pelo advogado-geral da União, Jorge Messias, em nome de Lula. Os sócios privados, liderados pelo grupo 3G, do bilionário Jorge Paulo Lemann, e a AGU selaram um acordo em março para encerrar o litígio. O governo emplacaria um indicado a mais no conselho de administração (três cadeiras, em um total de dez) e no conselho fiscal (uma em cinco). O STF validou o pacto em 11 de dezembro, mas fez duras críticas, por causa de um personagem inesperado no enredo: Joesley Batista, da JBS. Falaremos sobre isso mais adiante. De volta aos dividendos.

Dos 8,3 bilhões de reais distribuídos aos acionistas neste ano, a União ficou com cerca de 2 bilhões. Quanto maior o lucro, menor o investimento

Quando uma empresa paga quantias gordas, significa que abre mão de dinheiro que poderia investir nas suas operações rotineiras. É o que tem acontecido na Axia, com a bênção do lulismo. O principal argumento da gestão Bolsonaro para desestatizar a Eletrobras era a falta de caixa para levar adiante aportes em geração e distribuição de energia. Uma cartilha do Ministério de Minas e Energia dizia naquela época que a empresa precisava injetar ao menos 14 bilhões de reais por ano. De 2022 para cá, investiu 2 bilhões em um parque eólico no Rio Grande do Sul, o Coxilha Negra, e venceu leilões de construção de linhas de transmissão que somam 8 bilhões. Em suma, 10 bilhões de investimentos em três anos e meio, menos do que os privatizadores pregavam ser necessário em 12 meses.

Outro escárnio, para não dizer escândalo: os compradores da Eletrobras pagaram 26 bilhões ao Tesouro como “bônus de outorga” em troca da renovação antecipada da concessão de duas hidrelétricas (a companhia controla metade dos reservatórios de água do País). Os valores da privatização foram tidos como “preço de banana” por um dos ministros do Tribunal de Contas da União, por ocasião do exame do negócio na Corte. O balanço patrimonial da empresa mostra que a fruta era ainda mais suculenta. Ao ser vendida em junho de 2022, seis meses antes de Bolsonaro deixar o poder, a Eletrobras tinha 30 bilhões de “reservas de lucro”. Era um dinheiro ganho em anos anteriores e que ficou guardado no cofre para ser usado, por exemplo, com passivos judiciais. Nada a ver com competência gerencial dos atuais­ controladores. Por ser uma cifra superior ao “bônus de outorga”, é como se o governo tivesse dado os recursos que os compradores lhe pagaram.

Indecoroso. Para o ministro Flávio Dino, o acordo negociado pela AGU, que liberou a empresa da obrigação de investir na construção de Angra 3, foi “constrangedor” – Imagem: Antonio Augusto/STF

No caso do “bônus natalino” de 39 bilhões, a diretoria da Axia preparou uma engenharia para que o montante fosse entregue aos acionistas não em dinheiro vivo, mas com novas ações. Manipular o preço das próprias ações é uma marca da financeirização das grandes companhias na atualidade. É o que sustenta a economista italiana Mariana Mazzucato, no livro O Valor de Tudo: Produção e Apropriação na Economia Global (Portfolio­ ­Penguin), de 2020. “Muitas empresas usam seus lucros para impulsionar o valor das ações a curto prazo, em vez de reinvesti-los na produção a longo prazo”, afirma a autora. “A maior evidência de como o valor financeiro é capaz de prejudicar o valor econômico real pode ser encontrada em práticas disseminadas de recompra de ações por empresas de capital aberto nos Estados Unidos e no Reino Unido.”

A ex-Eletrobras enveredou pela ciranda da recompra de ações a partir de 2023. Comprou 10% delas desde então e as mantém hoje em tesouraria, conforme o balanço patrimonial. De acordo com Mariana Mazzucato, que foi recebida por Lula em 2023 no Planalto, a recompra de ações faz a festa dos executivos das empresas. Se a remuneração deles estiver atrelada ao desempenho delas, os dirigentes farão de tudo para que os papéis se valorizem, sem dar bola para consequên­cias de suas decisões no mundo real. No caso da Eletrobras, não importa que sua diretoria privada tenha cortado a cabeça de 5 mil funcionários desde 2022 e que essas demissões tenham, eventualmente, comprometido a qualidade do serviço prestado aos brasileiros. Redução de custos com mão de obra é uma das causas dos apagões da Enel em São Paulo. A propósito, cada diretor da Eletrobras recebe, em média, 11 milhões de reais por ano. Dois deles trabalharam no governo Bolsonaro. Um foi do time de Paulo Guedes no Ministério da Economia, Marcelo Siqueira, e outro, da equipe do almirante Bento Albuquerque nas Minas e Energia, Rodrigo Limp.

A turma bolsonarista da privatização havia feito um acordo com os compradores a respeito da usina nuclear de Angra 3 e é aqui que surgem Joesley Batista e as pancadas de uma ala do Supremo no acordo da AGU com os dirigentes da Axia. Quatro dos dez juízes do tribunal foram contra chancelar uma negociação entre governo e Eletrobras que não se limitou a discutir repartição de poder dentro da empresa. O pacto previa ainda anuência da gestão Lula para a Eletrobras sair de cena na área da energia nuclear e dar lugar ao conglomerado de Batista. Esse aspecto foi a razão para o ministro Alexandre de Moraes ter impedido o julgamento de ocorrer no escurinho da internet e ser levado ao plenário. “Um circo”, resumiu o togado. Flávio Dino concordou: “É constrangedor que a AGU tenha feito esse acordo”. A dupla perdeu por 6 a 4 no veredicto final dado pelo STF em 11 de dezembro. Acordo validado.

A companhia, rebatizada de Axia em outubro, propõe a distribuição de 39 bilhões de reais de suas reservas de lucro

Na época da privatização, a Eletrobras tinha se comprometido a ajudar a bancar as obras da usina de Angra 3, iniciadas em 2010 e paralisadas de 2015 a 2022. O acordo de agora da AGU liberou a empresa desse compromisso, em troca de que fossem investidos 2,4 bilhões de reais­ para esticar a vida útil de Angra 1. Logo após ter sido desobrigada de seguir em Angra 3, a Eletrobras privatizada alienou sua parte naquela estatal que é responsável pelas usinas nucleares, a ENBPar. Do outro lado do contrato, estava a ­Âmbar Energia, de Joesley Batista. A Âmbar topou pagar 535 milhões e assumir aqueles 2,4 bilhões prometidos a Angra 1.

Batista tem ampliado sua presença no setor energético, e o governo Lula não só vê essa participação com bons olhos (ele seria minimamente confiável) como topou arriscar-se política e juridicamente em nome do empresário. Em junho do ano passado, a Âmbar comprou um pacote de 13 usinas térmicas (movidas a gás ou petróleo) da ex-Eletrobras, por 4,7 bilhões. Uma das térmicas tinha uma grana graúda para receber de um cliente, a distribuidora Amazonas Energia, mas esta não tinha dinheiro para quitar. Lula baixou uma Medida Provisória para que o papagaio fosse jogado na conta de luz de todos brasileiros. A MP não foi votada no Congresso, tamanha foi a polêmica. A Âmbar resolveu a situação no Judiciário.

E Angra 3, vai ficar pronta com o apoio de Batista? A retomada das obras depende do Conselho Nacional de Política Energética. Em outubro, o CNPE encomendou ao BNDES estudos a respeito. O banco concluiu que vale a pena terminá-las. Já custaram 12 bilhões e seria preciso investir mais 24 bilhões até 2033 para finalizar o empreendimento. O custo de desistir do projeto seria de 22 bilhões a 26 bilhões. Poderia até sair um pouco mais barato, mas no fim das contas não haveria uma usina de pé a produzir energia. Agora a palavra está com o CNPE. •

Publicado na edição n° 1393 de CartaCapital, em 24 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Faça o pix’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo