CartaCapital
O último apague a luz
A crise da Enel reflete os entraves da abertura e das privatizações do setor elétrico
Demorou, mas chegou ao fim, ao menos no calor dos acontecimentos, a paciência com as sucessivas crises de abastecimento na Grande São Paulo, área de atuação da Enel, estatal italiana responsável pela distribuição de energia na região metropolitana mais populosa e rica do País. Na terça-feira 16, após uma longa reunião, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, o governador Tarcísio de Freitas e o prefeito da capital, Ricardo Nunes, anunciaram o início imediato do processo de rompimento da concessão, cujo prazo se estenderia, no mínimo, até 2028. “A Enel perdeu, inclusive do ponto de vista reputacional, as condições de permanecer à frente do serviço”, disparou Silveira. “Não há outra alternativa que não seja a caducidade”, acrescentou Freitas. A empresa “não tem estrutura nem compromisso para enfrentar situações adversas”, lascou Nunes. O ministro, ressalte-se, resistia à ideia de romper o contrato antes do término da concessão – havia até a promessa de renová-la por mais 30 anos –, mas foi obrigado a acatar uma ordem do presidente Lula, afinada com as posições do governador e do prefeito.
A gota d’água foi o terceiro apagão no intervalo de um ano. Depois de vendavais que assolaram São Paulo e o entorno, a falta de energia se generalizou e uma semana após as chuvas ainda não havia sido completamente solucionada, embora o número de residências sem luz tenha diminuído de 2,2 milhões para cerca de 30 mil. Os prejuízos foram incomensuráveis. Os setores de comércio e serviços estimam perdas de 2,1 bilhões de reais. O empresário Kléber Cristian é um dos prejudicados. A energia começou a falhar na MóPreza Pizzaria, no bairro da Bela Vista, centro da capital, às 8 da manhã da quarta-feira 10. Ao meio-dia, faltou de vez. Foram quase 80 horas no escuro, no período mais movimentado da semana, com reservas canceladas, ingredientes estragados, equipamentos danificados e uma sensação de insegurança que não se dissipou depois do restabelecimento do serviço. “Perdemos estoque de comida, bebida, uma geladeira, uma chopeira e até a fachada”, lamenta Cristian. Entre insumos, equipamentos e vendas não realizadas, o prejuízo chega perto de 80 mil reais. No domingo 14, enquanto limpava o restaurante para tentar reabrir, a luz oscilou por alguns minutos. “Bateu medo de novo”, recorda. “A gente que é pequeno comerciante mata um leão por dia. Não tem reserva para ficar quatro, cinco dias fechado. O pior não é só o prejuízo, é a insegurança constante.”
“Não é só o dinheiro. É a sensação de que você não tem a quem recorrer”, lamenta Gilmara Santos, moradora de Cotia
Em Cotia, na região metropolitana, a assessora de imprensa Gilmara Santos viveu o apagão de outra forma. Dois dias antes da queda de energia, havia feito as compras de fim de ano. Ficou 72 horas sem luz e perdeu mais de 3 mil reais em alimentos que estragaram na geladeira. Não foi a primeira vez. “Já havia acontecido antes. A diferença é que agora foi pior, porque eu tinha acabado de comprar tudo.” Sem eletricidade, Santos entrou em contato com o Serviço de Atendimento ao Cliente, abriu chamados pelo aplicativo e pelo telefone. Recebeu em troca respostas automáticas e promessas de prazos sempre descumpridas. Quando a luz voltou, o prejuízo estava feito. “Não é só o dinheiro. É a sensação de que você não tem a quem recorrer.”
Em Moema, um dos bairros com IPTU mais caros da capital, a gerente de marketing Juliana Branco passou seis dias sem energia em um prédio antigo na Avenida Jurucê. O edifício abriga muitos idosos e o gerador não aguentou manter os elevadores e as bombas d’água em funcionamento. “A síndica tem 79 anos e mora no 12º andar”, diz Branco. Embora no aplicativo da Enel os reparos aparecessem como concluídos, ela afirma nunca ter visto um carro ou prestadores de serviço da concessionária nos arredores durante o apagão. O fornecimento só seria restabelecido à meia-noite da terça-feira 16.
A promessa de Nunes, Silveira e Freitas será cumprida ou só busca aplacar os ânimos do momento? – Imagem: Sergio Barzaghi/Prefeitura de SP
Até o anúncio da decisão de iniciar o processo de retomada da concessão, desenhava-se o cenário dos apagões anteriores. O prefeito e o governador, aliados políticos, jogavam a responsabilidade nas costas de Brasília, enquanto o Palácio do Planalto lembrava que o repasse da Eletropaulo à Enel, na sequência da saída da norte-americana AES do controle, havia sido assinado no governo de Jair Bolsonaro, do qual Freitas foi um dileto e entusiasmado ministro. A empresa, por sua vez, responsabilizava a prefeitura pelo desleixo na poda de árvores. Durante a enxurrada, várias caíram sobre a fiação, o que agravou o problema. Um diretor da distribuidora chegou a comparar Nunes a um “marido traído que culpa o sofá”. E, em nota, reforçou os efeitos das fortes chuvas: “As condições climáticas causaram impactos severos na rede elétrica, atingida por quedas de galhos, árvores e outros objetos arremessados pela força contínua dos ventos. Desde a manhã de quarta-feira 10, a Enel mobilizou um número recorde de equipes em campo, chegando a quase 1.800 times ao longo dos dias”. As imagens de carros da companhia parados nos estacionamentos e de técnicos ensaiando coreografias no auge do caos, além da denúncia de cobrança de propina por parte de funcionários em troca da religação da energia, geraram um clima de revolta generalizado na população e exigiram do Poder Público uma resposta à altura. Adendo: é um símbolo do nosso atraso o fato de as cidades da oitava maior economia do planeta continuarem a ter um emaranhado de fios pendurados a céu aberto, em vez de uma fiação enterrada no solo.
Em resposta aos pedidos de esclarecimento de CartaCapital, a Enel repisou os argumentos da nota pública. “Há um ineditismo nos eventos climáticos registrados recentemente. São condições excepcionais, classificadas como extremas ou severas por vários institutos meteorológicos. Especificamente o da quarta-feira foi considerado histórico e único. Foi a primeira vez que a Região Metropolitana da Grande São Paulo, sem registro de chuva, foi afetada por rajadas de vento que chegaram a 98 quilômetros por hora por cerca de 12 horas em um único dia. No dia seguinte, o vento continuou provocando a queda de árvores, que danificaram a rede elétrica.” A concessionária também citou os investimentos desde que assumiu a concessão. “Até 2024, a companhia investiu mais de 10 bilhões de reais em São Paulo. Para o período de 2025 a 2027, a distribuidora aprovou um plano de investimentos recorde, atualmente em execução, no valor de 10,4 bilhões de reais”. Quanto às multas recorrentes, justifica: “Algumas estão em fase de recurso, conforme os trâmites do setor. Já os valores foram calculados com base na receita líquida da distribuidora, de acordo com a regulamentação. A Enel Distribuição São Paulo reafirma seu compromisso com os clientes e com os 24 municípios da área de concessão, incluindo a capital”.
A prefeitura acusa a Enel de não prestar o socorro devido, a empresa nega. O empresário Kléber Cristian teve prejuízo de 80 mil reais – Imagem: Luca Meola/CartaCapital e Rovena Rosa/Agência Brasil
A estatal italiana tem, no entanto, um histórico de péssimos serviços prestados em outras áreas de concessão. Em Goiás, após uma série de falhas de fornecimento, a empresa entrou em choque com o governador Ronaldo Caiado. A companhia havia adquirido a Celg por 2,1 bilhões de reais em 2017 e prometia investimentos em infraestrutura e uma redução nas falhas do fornecimento em 40% no prazo de três anos. Deu-se o contrário. O estado tornou-se a unidade da federação com o maior índice de interrupções. Consumidores ficavam, em média, 26,6 horas sem luz por ano, ante 12,8 no restante do País. Em 2019, Caiado foi enfático nas críticas e as tensões chegaram ao ponto de a Assembleia Legislativa instaurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito. No relatório final, a CPI pediu a caducidade da concessão e a encampação do serviço pela Agência Goiana de Regulação. Em 2022, por conta das enormes pressões, a Enel decidiu vender a concessionária à Equatorial Energia por 1,6 bilhão de reais. A dívida acumulada chegava a 5,7 bilhões de reais.
No Rio de Janeiro, a multinacional foi alvo de ações do Ministério Público estadual pela insuficiente prestação de serviços em cidades como Niterói, Petrópolis, Paraty e Resende. A empresa foi acusada de não se preparar adequadamente para eventos climáticos intensos e de não dar respostas rápidas e adequadas às interrupções no fornecimento de energia. Em 2021, o MP ajuizou um processo no qual exigia melhorias imediatas, mas a concessionária questionou as multas na Justiça. No Ceará, o Ministério Público e a Assembleia Legislativa não largaram o pé da distribuidora nos últimos seis anos, em resposta às queixas de apagões prolongados, perdas no comércio e atendimento ineficaz aos clientes. Em 2024, uma CPI, a exemplo de Goiás, sugeriu a caducidade do contrato da empresa. À época, a Enel prometeu investir na melhora do atendimento.
Entre 2000 e 2024, o custo da eletricidade no País subiu 1.299%, ante uma inflação acumulada de 326%
O modelo desenhado para punir a má prestação do serviço virou um labirinto no qual as sanções demoram, são contestadas e raramente chegam a produzir o efeito pretendido. Segundo Ivana Cota, coordenadora do Ciari Moreira Advogados, quando multas ficam suspensas por longos períodos, “elas passam a ser vistas como custo previsível, não como incentivo real à mudança”. Daniela Poli Vlavianos, do Arman Advocacia, lembra que as punições pecuniárias foram criadas menos para arrecadar e mais para induzir a um tipo de conduta, mas perdem força quando a concessionária consegue adiar seus efeitos com recursos e ações judiciais.
A anulação da concessão em São Paulo não se dará, porém, da noite para o dia. O Ministério de Minas e Energia encaminhará o pedido, mas a decisão cabe à Agência Nacional de Energia Elétrica. Um processo será aberto a partir da solicitação e a Aneel vai apurar se as falhas justificam o rompimento do contrato, com ampla defesa da empresa. A concessão vence em 2028 e a estatal italiana pleiteava a prorrogação antecipada. Para muitos especialistas, não haveria tempo hábil antes do fim do prazo previsto para se encampar a companhia e promover um novo leilão. Uma coisa parece certa, porém. A tendência é a companhia, acusada de não investir o suficiente na prestação dos serviços, pisar ainda mais o freio e fazer o mínimo até o momento de devolver a antiga Eletropaulo ao Estado. Como mostra o gráfico à pág. 17, desde 2018, a Enel engordou o faturamento e o lucro, o que significa uma ampliação das remessas de dividendos à matriz na Itália – o Brasil responde por 10% dos ganhos mundiais da estatal e tem a segunda maior base de clientes, em torno de 16 milhões, atrás apenas do país-sede. O tamanho do mercado nacional parece não merecer atenção devida. Nos últimos cinco anos, a concessionária foi multada pela Aneel em 374 milhões de reais, mas pagou apenas 8% do total. O restante está em disputa na Justiça.
Alessandra Salim, especialista em Direito Regulatório do Rücker Curi Advocacia, diz que contestar multas na Justiça não apaga a infração. Mesmo quando a exigibilidade é suspensa, o histórico vira registro formal de reincidência e pode ser usado como base probatória em decisões mais duras. Em outras palavras, a multa pode não doer no caixa agora, mas pesa no dossiê. O nó aparece, no entanto, quando se tenta passar da punição rotineira para medidas estruturais. O rompimento do contrato exige a prova de descumprimento grave e reiterado, um processo administrativo intricado. A regra está na Lei 8.987, de 1995, mas o caminho é tortuoso. “O sistema costuma travar quando se tenta avançar para sanções mais duras”, avalia Cota. A barreira, explica Vlavianos, é jurídica e institucional, pois a produção de prova técnica precisa ser sólida e a decisão tende a ser judicializada, com efeitos prolongados. Há ainda um componente operacional e fiscal. A caducidade, prossegue Salim, é rara por envolver custo de transição, risco de descontinuidade e discussão a respeito da indenização de investimentos ainda não amortizados. O poder concedente, diante desse pacote, costuma preferir uma escala de punições graduais – advertências, multas, exigência de planos – antes de partir para a medida extrema.
Os entraves à intervenção pública neste e em outros casos têm origem no modelo de abertura e privatização do setor elétrico no período Fernando Henrique Cardoso. A primeira estatal leiloada, 30 anos atrás, foi a Escelsa, concessionária do Espírito Santo, que estava em uma situação pré-falimentar e foi obrigada a entregar à União ativos em troca de um alívio no caixa. Foi o pontapé para as vendas em cascata de empresas e a criação do chamado “mercado livre” sob a promessa de que os consumidores seriam agraciados com concorrência, serviços de “Primeiro Mundo” e preços baixos. Três décadas depois, a realidade é outra. O sistema, antes integrado, ficou mais instável, perigosamente dependente de termelétricas e mais caro, o que praticamente eliminou uma vantagem competitiva histórica do País. Um levantamento da Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia (Abrace), divulgado em julho último, mostra que, entre 2000 e 2024, o custo da eletricidade subiu 1.299%, ante uma inflação acumulada de 326% no mesmo período. A energia passou a responder por até 90% do aumento de preços de itens básicos da cesta de consumo e pressionou famílias, comércio e indústria. O plano de FHC empurrou o Brasil ao racionamento de 2001. O PT tinha a faca e o queijo nas mãos para desfazer as barbeiragens do antecessor ao assumir o governo em 2002, mas a opção do partido foi fazer remendos à abertura patrocinada pelo tucanato. Como diz o ditado, a emenda, quase sempre, fica pior do que o soneto.
Caiado entrou em choque com a Enel. No fim, a estatal italiana vendeu à Equatorial o controle da concessionária de energia em Goiás – Imagem: Marina Ramos/Agência Câmara
A Eletropaulo, desmembrada e entregue ao capital privado, enfrenta problemas desde seu leilão, em 1998. Paulo Feldmann, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP, presidia a estatal no período de transição. “Dividimos a empresa em quatro, para que cada uma fosse vendida separadamente”, recorda Feldmann. O resultado, avalia, foi uma “tragédia”. “Mudamos de um modelo de monopólio estatal para monopólio privado, voltado para lucro e remessa para o exterior, eu tenho vergonha do que aconteceu.” O modelo de desestatização, afirma o professor, foi mal concebido. “A privatização de um monopólio natural não pode basear-se na ideia de competição. Esse modelo se mostrou ineficaz, e, agora, o que temos são empresas que priorizam o lucro imediato, enquanto os serviços ficam em segundo plano.”
“Tenho vergonha do que aconteceu”, afirma o economista Paulo Feldmann, presidente da Eletropaulo à época da privatização
No início da privatização, a Eletropaulo era uma das maiores distribuidoras de energia do País, com um histórico de falhas operacionais, mas de grande presença no mercado e serviços essenciais ofertados à capital paulista e seu entorno. Quem venceu o primeiro leilão foi a norte-americana AES Corporation, que assumiu a concessão na Grande São Paulo. Na esteira do racionamento, em 2001, a multinacional pediu a conversão do 1,2 bilhão de dólares emprestado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social em participação acionária, um calote disfarçado. Indicado presidente da instituição financeira em 2002, o economista Carlos Lessa expôs o acinte da proposta, que espetava na Viúva um rombo gerado em parte por má gestão. Na queda de braço, coube a Lessa divulgar um dado interessante do modelo de privatização à brasileira. Quase 80% dos financiamentos liberados pelo banco no processo de abertura do setor foram direcionados não ao incremento dos investimentos, mas à compra de participação nas estatais. Em outras palavras, a privatização foi paga com dinheiro público, recursos que poderiam ter sido aplicados na modernização das empresas públicas sem a necessidade de se desfazer do controle. Em 2018, sem nenhuma evidência da tese “privatiza que melhora” e sem deixar saudades, a AES vendeu à Enel por 5,5 bilhões de reais o controle da Eletropaulo Metropolitana e deixou o País. Pior para os consumidores paulistas.
Desde a venda da Eletropaulo à norte-americana AES, em 1998, os problemas se acumulam – Imagem: Marie Hippenmeyer/AFP
O ímpeto de Silveira, Freitas e Nunes talvez não passe de um raio no céu azul, talvez estabeleça um novo padrão de comportamento e abra a oportunidade de um debate sobre as adaptações necessárias do sistema elétrico, discussão interditada pelo fanatismo neoliberal. No fim dos anos 1990, o Brasil optou por desperdiçar uma vantagem competitiva, a oferta de eletricidade segura a preços moderados. O País almeja e promete apostar na reindustrialização da economia, a partir da transição energética e ecológica e de uma nova inserção nas cadeias globais de suprimentos. Os formuladores das políticas públicas precisam, porém, entender que a ausência de planejamento no setor é uma barreira tão ou maior do que os juros básicos a 15% ao ano. Bravatas desopilam o fígado, mas não resolvem os dilemas. •
Publicado na edição n° 1393 de CartaCapital, em 24 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O último apague a luz’
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