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Piratas do Caribe

Com o avanço militar sobre o petróleo, Donald Trump escancara sua verdadeira ambição na Venezuela

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Bloqueio. Após confiscar um petroleiro em direção a Cuba, o presidente dos Estados Unidos ordenou às forças navais estacionadas no Mar do Caribe que impeçam o tráfego de navios venezuelanos. O objetivo é forçar a queda do governo de Nicolás Maduro – Imagem: General Pam Bondis/AFP, Zurimar Campos/Presidência da Venezuela/AFP e Andrew Caballero-Reynolds/AFP
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Há décadas os Estados Unidos são acusados de invadir paí­ses e derrubar presidentes para se apossar do petróleo alheio. A acusação, recorrente nos casos do Iraque, da Síria e da Líbia, ganhou com os recentes episódios na Venezuela um inesperado caráter escancarado e grotesco, quando militares norte-americanos simplesmente capturaram um petroleiro que transportava 2 milhões de barris petróleo bruto do país caribenho. A embarcação e a carga foram levadas para os EUA, numa cena tão desbragada que só os contos mais clichês de pirataria poderiam proporcionar. Menos de uma semana depois, o presidente dos EUA, Donald Trump, anunciou um cerco naval “da maior armada jamais reunida na história da América do Sul” para impedir o tráfego de navios da Venezuela. Com isso, reeditou os bloqueios típicos das relações entre as potências e suas colônias até o século XIX, e estrangulou de vez não apenas a economia venezuelana, mas aquela de nações próximas, como Cuba, que, sob bloqueio estadunidense, tem uma dependência vital do produto enviado por Nicolás Maduro.

A justificativa para o bloqueio é distorcida: Trump diz que ele visa obrigar a Venezuela a devolver “todo petróleo, as terras e os bens roubados dos EUA”. As reservas petrolíferas venezuelanas são as maiores do mundo. O país tem 17% de todo petróleo detectado até hoje no globo e seus mais de 300 bilhões de barris representam seis vezes a quantidade em poder dos EUA. Quando fala de “roubo”, Trump refere-se à estatização da exploração. Ainda sob o governo de Hugo Chávez, nos anos 2000, multinacionais estrangeiras foram obrigadas a se converter em empresas mistas, com a estatal venezuelana PDVSA no controle majoritário delas. O processo afugentou as companhias norte-americanas e, hoje, só a Chrevron opera no país. A estatização de recursos naturais evoca lembranças do que aconteceu com o cobre no Chile, após a eleição de Salvador Allende, em 1970, com os hidrocarbonetos na Bolívia de Evo Morales, em 2006, e, principalmente, com o confisco de propriedades dos EUA em Cuba após a revolução de 1959, um processo certamente traumático para o atual secretário de Estado, Marco Rubio, cujos pais emigraram para Miami antes da ascensão de Fidel Castro, mas, ainda assim, alimentaram um profundo ressentimento em relação ao socialismo latino-americano.

No caso da captura do petroleiro ­Skipper, Washington diz que o confisco se deve à violação de uma série de sanções econômicas impostas à Venezuela. As sanções estão, porém, baseadas na legislação doméstica dos EUA e sua aplicabilidade internacional é questionável. Sanções são consideradas medidas hostis, coercitivas e de força que só poderiam ser aplicadas por determinação do Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas o uso se tornou indiscriminado, o que fez desses garrotes econômicos uma arma de guerra híbrida de baixa intensidade contra adversários políticos.

Além de sufocar o governo Maduro, a Casa Branca atinge Cuba

Foi um “ato de pirataria e terrorismo marítimo”, disparou, na data do confisco do petroleiro, o governo de Cuba, a quem se destinaria parte da carga transportada pela embarcação. Na mesma linha, o parlamentar trabalhista Jeremy Corbin, em discurso oficial na tribuna do Parlamento Britânico, em Londres, declarou: “Isto é simplesmente um ato de pirataria cometido pelos EUA no Caribe”. O Reino Unido, país de origem do Barba ­Negra, conhece o assunto.

Trump não esconde que a pressão sobre a Venezuela tem a ver com o petróleo. Ainda em 2023, durante um comício republicano na Carolina do Norte, afirmou, de maneira cristalina: “Quando eu saí (da Casa Branca), a Venezuela estava à beira do colapso. Nós teríamos assumido o controle, teríamos ficado com todo aquele petróleo, bem na nossa vizinhança”. O que não foi feito no primeiro mandato está sendo realizado agora, no segundo.

Poucas semanas depois de ter recebido o Prêmio Nobel da Paz, Maria ­Corina Machado, a voz mais forte da oposição a Maduro, participou virtualmente de uma conferência com empresários norte-americanos reunidos em Miami, na qual o próprio Trump esteve presente. Na ocasião, ela enfatizou a “oportunidade­ de 1,7 trilhão de dólares” que a Venezuela representa para investidores interessados nas maiores reservas conhecidas de petróleo em todo o mundo.

Nossa mulher em Caracas. Corina Machado é a preferida da Casa Branca para assumir o país caso Maduro caia – Imagem: Ole Berg-Rusten/AFP

Corina Machado é figura central nos planos de Trump. O presidente norte-americano incomoda-se com a preferência dada por Maduro aos chineses. Para acalmar os ânimos e ganhar sobrevida, o presidente venezuelano até teria oferecido ampliar a participação norte-americana no negócio. A oferta teria sido feita na conversa telefônica que ambos mantiveram, em novembro, mas o entorno de Trump, com Rubio à frente, considera que o venezuelano não é confiável. Para eles, Corina Machado seria a política certa para assumir o governo, afastar os chineses e abrir as portas às empresas dos EUA.

A rixa de Corina Machado com Maduro­ transcende a questão do petróleo. Ela denuncia há anos a perseguição a opositores políticos, vítimas de numa série de violações de direitos humanos fartamente documentadas na investigação formal aberta contra o presidente venezuelano pela procuradoria do Tribunal Penal Internacional, em Haia, em novembro de 2021. A Assembleia Nacional, controlada por governistas, acaba, porém, de denunciar o Estatuto de Roma, o que significa retirar a Venezuela do alcance do TPI. No que diz respeito a Maduro, entretanto, a medida é inócua, pois a Corte mantém a autoridade de alcançar os crimes cometidos durante a vigência da adesão, como mostra o caso recente do ex-presidente das Filipinas ­Rodrigo ­Duterte, preso em Manila e deportado para Haia, apesar de seu país também ter denunciado o Estatuto de Roma.

Fora da Venezuela, Corina Machado trata de “vender” o país a empresários

A opositora sabe do peso que as denúncias e as investigações internacionais têm sobre o desfecho do impasse venezuelano. Por isso, apostou alto na viagem a Oslo para receber o Nobel da Paz. Para sair da Venezuela, ela diz ter feito uma viagem de barco, na calada da noite, até o território holandês de Curaçao­, de onde foi levada por uma empresa norte-americana formada por ex-integrantes das forças armadas dos EUA para a Europa. Corina Machado, que dedicou o prêmio a Trump, é entusiasta das operações militares norte-americanas contra seu próprio país. Segundo ela, a pressão bélica é uma forma legítima de forçar a saída de um líder que usurpou o poder. A acusação está na boca da direita e da extrema-direita venezuelanas desde ao menos o fim dos anos 1990, quando Chávez ascendeu à Presidência. Mais recentemente, antigos aliados de Maduro­ na região, dentre os quais o presidente Lula, também passaram a dizer de forma mais clara que a democracia local está golpeada. Para o Brasil, o ponto de virada ocorreu na última eleição, quando o governo venezuelano escondeu as atas finais de votação.

A erosão no respaldo a Maduro tornou mais fácil para os EUA levarem a cabo o cerco naval e suas ameaças de invasão. Para justificar a investida, Trump usa o argumento do combate ao narcotráfico, equiparado por ele ao crime de terrorismo. Em sua ofensiva mais recente, decidiu classificar o fentanyl como arma de destruição em massa. O opioide sintético, mais potente que a heroína e a morfina, provocou 77 mil mortes em 2023 nos EUA, mas esse número caiu para 43 mil entre abril de 2024 e abril de 2025. Além do mais, o maior exportador de fentanyl para o território norte-americano é o México, não a Venezuela, que atua muito mais como um corredor de passagem de cocaína para a Europa. “Essa agenda golpista contra a Venezuela, chamada agora de ‘mudança de regime’, tem um forte impulso da parte de Rubio e dos lobbies cubano e venezuelano de Miami, que têm muitos interesses em jogo”, afirma Luis Salas Rodríguez, sociólogo e economista político que comandou o Ministério da Economia Produtiva da Venezuela em 2016, ainda no terceiro ano do governo Maduro. Os norte-americanos, afirma, precisam “inventar um mal”, como os cartéis de tráfico de drogas, para justificar “uma tomada militar da região”. •

Publicado na edição n° 1393 de CartaCapital, em 24 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Piratas do Caribe’

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