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Funeral precoce

Dez anos após o Acordo de Paris, a meta de limitar o aquecimento a 1,5 ºC já sucumbiu à relutância dos líderes globais em promover mudanças estruturais

Funeral precoce
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O cortejo fúnebre percorreu as ruas de Belém em novembro – Imagem: Barbara Dias/Rede Favela Sustentável/ComCat
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O Acordo de Paris acaba de completar dez anos, mas não há clima para comemorações. Há, no máximo, uma compreensão mais nítida do que está em jogo. A promessa de “manter o aquecimento em 1,5 grau Celsius” até o fim do século sucumbiu a um sistema econômico incapaz de conter a própria voracidade. O pacto firmado em 2015 permitiu que cada país definisse suas metas climáticas conforme seus interesses de competitividade e crescimento, não segundo as necessidades físicas do planeta. Essa arquitetura diplomática, erguida para acomodar divergências e resguardar o mercado global, produziu exatamente o que se poderia esperar: objetivos pouco ambiciosos, compromissos imprecisos e ampla margem para a inércia.

As emissões de gases de efeito estufa continuam elevadas, as fronteiras extrativas se expandem e a perspectiva de estabilização climática se afasta. Paris tornou-se um marco retórico, não um divisor de águas. É o símbolo de uma diplomacia que nomeia o problema, mas evita enfrentá-lo, pois isso confrontaria a lógica da acumulação ilimitada de capital.

A 30ª Conferência das Nações Unidas Sobre Mudanças Climáticas, realizada em Belém, poderia ter sido o momento de romper essa rotina. Não apenas pela localização simbólica – a Amazônia, onde a convergência entre desmatamento, mudanças climáticas e violência territorial já produz um cenário extremo –, mas pela urgência incontornável do tempo histórico. A COP30 tinha a chance de dizer o óbvio: não há futuro possível enquanto petróleo, gás e carvão permanecerem no centro da estrutura produtiva global. Contudo, essa afirmação decisiva não veio. O texto final foi construído com prudência calculada. Reconheceu a importância das florestas tropicais, prometeu recursos para adaptação, incluiu dispositivos que valorizam os povos da floresta, mas preservou intacto o núcleo do modelo energético.

Ao término da COP30, o modelo energético permaneceu intacto, ainda centrado nos combustíveis fósseis

A eliminação progressiva dos combustíveis fósseis, condição mínima para qualquer cenário viável, foi ­substituída por termos tecnológicos que soam sofisticados, mas operam como adiamento permanente. Em Belém, o capital fóssil venceu sem sequer ocupar o palco. Seu poder se expressou justamente na ausência de qualquer confronto real.

Esse padrão não se repete por acaso. Estamos diante de um impasse estrutural. Os Estados que negociam em conferências climáticas operam presos a uma lógica de competição incessante, que exige crescimento contínuo. Esperar que se autolimitem é esperar que renunciem à própria razão de funcionamento. É pedir que abandonem a corrida tecnológica, a expansão de mercados e a acumulação que sustenta suas elites econômicas. Por isso, quando se fala em “economia verde”, trata-se, na maior parte das vezes, de uma tentativa de ajustar o capitalismo às pressões ecológicas sem alterar o seu motor central. Novos instrumentos financeiros substituem os antigos. Empresas anunciam metas de neutralidade futura, enquanto abrem novos poços de petróleo no presente. Governos celebram reduções marginais de emissões, ao mesmo tempo que aprovam obras e atividades que ampliam o desmatamento. A embalagem muda, a lógica destrutiva permanece.

Não há motivo para esperar que a próxima conferência rompa com o curso atual. A COP31 herdará um planeta mais quente, uma década perdida e instrumentos diplomáticos que, mesmo quando reconhecem a urgência, tratam a transição energética como algo compatível com a continuidade do modelo fóssil. É provável que se repitam as mesmas fórmulas já conhecidas: apelos à mobilização do setor privado, novos arranjos de mercados de carbono, fundos internacionais condicionados a ciclos econômicos e promessas de cooperação que evitam nomear os responsáveis pela crise. Tudo isso pode produzir manchetes otimistas, mas não altera o cerne do problema: o mundo continua organizado em torno de um sistema que exige expansão permanente para manter sua estabilidade interna. A transição, quando submetida a essa lógica, torna-se um discurso sem efeito material.

A lição desses dez anos é clara. A solução para a emergência climática não virá de uma diplomacia encarregada de administrar o possível dentro das fronteiras do capitalismo. Não se trata de falta de boa vontade, mas de limites objetivos. Para que o clima se estabilize, seria necessário reduzir drasticamente atividades destrutivas, reorganizar a matriz energética, diminuir a escala material da produção e proteger territórios que garantem a reprodução da vida. Isso exige outro tipo de racionalidade social, baseada na planificação democrática, na redução do consumo supérfluo e na prioridade às necessidades coletivas e à justiça socioambiental. Em outras palavras, não se muda o clima sem mudar a sociedade.

Se Paris fracassou e Belém decepcionou, isso não é motivo para resignação. Ao contrário. O fracasso das instituições não é o fracasso das lutas. A história mostra que as transformações profundas nunca vieram de conferências diplomáticas, mas da ação social capaz de alterar a correlação de forças. Hoje, essa ação se expressa de múltiplas formas: nos povos indígenas que defendem seus territórios da mineração e do agronegócio, nas comunidades ribeirinhas expulsas por hidrelétricas e grileiros, nos trabalhadores que temem ser sacrificados em transições injustas, nas mães que perderam suas casas em enchentes e secas, na juventude que se recusa a aceitar um futuro arruinado como destino natural. Esses grupos não apenas denunciam a devastação, como também apontam para outra ideia de sociedade, fundada na vida e não na expansão infinita da produção.

Dez anos depois do Acordo de Paris, o que temos de mais valioso é justamente essa conscientização crescente. Não se trata de uma lucidez contemplativa. Ela não celebra nem aceita consolo. Ela organiza, articula e insiste que o problema climático não é técnico, mas político. E que, sem enfrentar o sistema que produz a crise, continuaremos acumulando conferências, relatórios e desastres, enquanto perdemos aquilo que nenhuma negociação futura poderá restaurar. •


*Adilson Vieira é coordenador de articulação e parcerias da Rede de Trabalho Amazônico (GTA). Pedro Ivo Batista é coordenador
nacional do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS).

Publicado na edição n° 1393 de CartaCapital, em 24 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Funeral precoce’

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