CartaCapital
Direito não expira
Em encontro nacional, familiares cobram a atualização da lista oficial de mortos e desaparecidos na ditadura
Nadja e Procópio Mendes de Araújo são filhos de João Mendes, assassinado pela ditadura em 1972. Praticamente não conheceram o pai e apenas no início deste ano, mais de cinco décadas depois, descobriram que o genitor foi perseguido, preso e morto por agentes da repressão. Alijados de sua própria história, não constam na relação de familiares de mortos e desaparecidos políticos do regime militar (1964–1985) e, por essa razão, estão impedidos de pleitear reparação do Estado. Assim como os irmãos pernambucanos, cerca de 10 mil cidadãos reivindicam a inclusão de seus nomes na listagem, cujo prazo para novos reconhecimentos expirou em 2002, conforme prevê a Lei nº 9.140, de 1995 – contestada por diversos juristas por tolher indevidamente o direito à memória e à verdade.
A reabertura dessa listagem é uma das principais reivindicações apresentadas em um encontro nacional de familiares de vítimas da ditadura, o Enafam, realizado nos dias 3 e 4 de dezembro, em Brasília. Foi a primeira vez que Nadja e Procópio participaram da reunião. “Nunca imaginei que pudesse existir tanta gente sofrendo até hoje com as barbáries da ditadura. Foi importante saber que não estou sozinha nessa causa”, diz a filha de João Mendes. Em carta aberta, os participantes também cobram a inclusão de camponeses, quilombolas, indígenas e outros perseguidos pelo regime militar que ficaram de fora do relatório da Comissão Nacional da Verdade, que contabilizou 434 mortos e desaparecidos nesse período.
Amparo Araújo, que teve o irmão e o marido assassinados pelo regime militar, lembra que a ocultação de cadáveres é um crime permanente, não abrangido pela Lei de Anistia, segundo o entendimento firmado pelo ministro Flávio Dino, ao julgar uma ação no Supremo Tribunal Federal. “A cada dia, surgem novos casos de violações, que são comprovadas em detalhes”, afirma a ativista, para quem não faz o menor sentido fixar um prazo para reconhecer se um indivíduo foi ou não vítima da ditadura.
Uma lei de 1995 fixou prazo para a inclusão de novos nomes e dificulta ações de reparação
Dentro da estrutura governamental, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos há tempos solicita a inclusão de novos nomes na lista oficial, mas esbarra na resistência da consultoria jurídica do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, aferrada ao prazo estabelecido pela Lei nº 9.140. O colegiado acionou a Advocacia-Geral da União para questionar a constitucionalidade da norma, mas o processo não avançou e dificilmente terá desfecho antes de o Senado avaliar a indicação do atual advogado-geral, Jorge Messias, para uma vaga no STF. “Com base na carta aprovada no Enafam, vamos voltar a solicitar internamente uma providência ou verificar se alguma organização da sociedade civil se dispõe a ingressar com a ação no Supremo”, explica Eugênia Gonzaga, presidente da Comissão, que coordenou o encontro de familiares de vítimas da ditadura.
Gonzaga observa que a Lei nº 9.140 deve ser interpretada em conjunto com outras normas jurídicas e entendimentos jurisprudenciais, segundo os quais não há prazo para pedidos de reparação, tampouco para a busca de corpos, um direito de natureza humanitária. “Além disso, a lei exige que, para ser reconhecida como vítima, a pessoa tenha sido militante político ou atuado diretamente contra a ditadura, o que é bastante questionável.”
Integrante da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Diva Santana defende que o colegiado promova o reconhecimento imediato de novas vítimas nos casos em que não haja solicitação de reparação econômica. “Infelizmente, não podemos acolher requerimentos de famílias que impliquem custos ao Estado”, afirma a conselheira, acrescentando que a ONU orientou o Brasil a deixar de fixar prazos.
Revisão da lei. Eugênia Gonzaga pediu para a AGU ingressar com uma ação no STF – Imagem: Clarice Castro/MDHC
Em Brasília, parentes de vítimas também discutiram a retomada dos exames de DNA nos corpos de militantes mortos pela repressão à Guerrilha do Araguaia e solicitaram uma audiência com o presidente. “Lula já recebeu familiares em outros países e, aqui no Brasil, nunca recebeu esse público”, observa Gonzaga. Os quase 200 participantes ainda cobraram que os prédios do DOPS no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, a sede da Fazenda Cambahyba, em Campos dos Goytacazes (RJ), e da empresa Propará, em Cachoeira do Piriá (PA), sejam transformados em sítios de memória.
Durante o encontro, o Ministério dos Direitos Humanos entregou certidões de óbito retificadas a familiares de vítimas da ditadura, reconhecendo formalmente a responsabilidade do Estado brasileiro pelas mortes. A iniciativa já foi realizada em São Paulo e Minas Gerais e, no início do próximo ano, chegará em Pernambuco, onde os documentos serão concedidos às famílias nordestinas. A cerimônia, prevista para ocorrer no Recife, deve integrar uma agenda conjunta com a Comissão Nacional de Anistia, que, em 2026, promoverá sessões itinerantes nos estados.
“Nossa expectativa é iniciar os trabalhos do próximo ano com sessões de julgamento de processos coletivos e a implantação das Caravanas da Anistia. A ideia é realizar pelo menos quatro: duas no Nordeste, em Pernambuco e Ceará, e duas no Sudeste, em Minas Gerais e São Paulo. Além disso, pretendemos desenvolver ações de memória nas escolas, a fim de apresentar às comunidades acadêmica e estudantil o que foi o processo ditatorial”, destaca Ana Oliveira, presidente da Comissão de Anistia.
Em 2026, a Comissão de Anistia vai realizar sessões itinerantes em diversos estados
Ao contrário da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a Comissão de Anistia continua a receber novos casos. “A lei que criou este colegiado não estabelece prazo, até porque o Estado brasileiro ainda não abriu todos os arquivos da ditadura”, explica Oliveira, acrescentando que, após a repercussão do filme Ainda Estou Aqui, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o número de pedidos de reparação aumentou consideravelmente.
Até outubro deste ano, a Comissão de Anistia já havia analisado mais de 8 mil requerimentos, enquanto outros 4 mil ainda aguardam julgamento. “Estamos reavaliando processos indeferidos durante o governo Bolsonaro. Em muitos casos, houve um processo absurdo de revitimização: solicitantes de anistia foram desqualificados, chamados de bandidos e acusados de terem sido presos por supostas infrações à lei”, explica Oliveira.
Em 2026, a Comissão de Anistia pretende priorizar julgamentos envolvendo filhos e netos de vítimas da ditadura. “A lei precisa evoluir. Muitas pessoas sofreram perseguição apenas por serem parentes de militantes. Alguns enfrentaram bullying na escola por serem filhos de ‘comunistas’, outros sofreram exílio ainda bebês. Isso também é violação do Estado e precisa ser considerado”, afirma Oliveira. Ela acrescenta que quem nasceu no exílio ou na prisão, ou acompanhou os pais perseguidos, também é vítima, reforçando a urgência de uma Justiça de Transição para dar visibilidade ao que foi a ditadura no Brasil. “A geração pós-1964 desconhece a verdadeira história do País, e muitos jovens chegam a defender a ditadura. O 8 de Janeiro mostrou o resultado da impunidade daqueles que violaram a democracia, mataram, torturaram e prenderam quem lutava pela liberdade.” •
Publicado na edição n° 1393 de CartaCapital, em 24 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Direito não expira’
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