CartaCapital

assine e leia

A questão é de classe

A adesão dos evangélicos ao bolsonarismo varia conforme a renda dos fiéis, revela pesquisa

A questão é de classe
A questão é de classe
Em disputa. O apoio dos evangélicos a Bolsonaro caiu de 2018 a 2022. Lula tem condições de minar as resistências – Imagem: Ricardo Stuckert/PR e Alan Santos/PR
Apoie Siga-nos no

No Brasil, os evangélicos costumam ser associados de forma indistinta ao bolsonarismo, mas uma pesquisa publicada na ­Revista Debates, da UFRGS, aponta o peso de outra variável. No estudo Evangelismo Não Bolsonarista, os cientistas políticos Emerson Urizzi Cervi e Naiara Sandi de Almeida Alcântara analisaram o perfil socioeconômico de eleitores que responderam a sondagens de intenção de voto do Instituto Datafolha em 2022. Em um universo de mais de 12,8 mil entrevistados, os fiéis com maior renda eram os que mais apoiavam Jair Bolsonaro, enquanto aqueles de menor poder aquisitivo se mostravam mais críticos e inclinados a votar em Lula.

Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores agruparam 39 denominações evangélicas em quatro grupos: protestantes tradicionais, pentecostais, ­neopentecostais e não especificados. Para analisar o comportamento eleitoral de cada um deles, foram criadas as categorias “Vota em Lula e rejeita Bolsonaro”, “Vota em Lula e não rejeita Bolsonaro”, “Vota em Bolsonaro e não rejeita Lula”, “Vota em Bolsonaro e rejeita Lula”. Os resultados também levaram em conta a renda dos eleitores de cada grupo.

Ao cruzar os dados, os autores constataram que os protestantes e os pentecostais, geralmente de maior renda, eram os que mantinham o apoio mais firme ao capitão, ao passo que os evangélicos de menor renda eram mais críticos. O grupo mais simpático a Lula, por exemplo, é o dos neopentecostais, no qual 57% dos eleitores recebiam até dois salários mínimos. “A questão também é de classe social”, observa Alcântara, professora do Departamento de Ciência Política da UFPA. “É um equívoco tratar o evangelismo como um bloco monolítico”, emenda Cervi, da UFPR. “Em muitos aspectos, há mais pluralidade ali do que no catolicismo.”

Não é um bloco monolítico. Os mais pobres dependem de políticas públicas e demonstram maior simpatia por Lula

Os evangélicos representam 31% do eleitorado e, nas duas últimas eleições, estiveram mais alinhados à direita. Isso não configura, porém, um cenário imutável, enfatiza Cervi. Segundo o cientista político, a maioria dos eleitores “não alinhados” frequenta grandes templos, cujos líderes flertam constantemente com o bolsonarismo. Ainda assim, uma parcela expressiva dos fiéis­ ignora as orientações pastorais e vota de acordo com a própria consciência. “Existe, sim, espaço para disputar esse eleitorado”, afirma. “Quem tem menor renda depende mais das políticas públicas e não avalia governos apenas a partir de pautas morais ou de costumes.”

Alcântara destaca que, entre os neopentecostais, “o fator renda costuma sobrepor-se à religião”. Isso não significa que esses fiéis desprezem completamente a influência dos pastores ou estejam afastados da igreja, mas que a realidade concreta se impõe no momento da escolha política. Os pesquisadores reconhecem que temas como aborto e direitos LGBTQIA+ mobilizam parcela expressiva do eleitorado cristão, até pelo “pânico moral” disseminado pela extrema-direita. Ainda assim, avaliam que, se o campo progressista conseguir deslocar o debate para questões materiais, o jogo tende a ficar mais equilibrado. “A estratégia mais acertada é concentrar a discussão em temas que realmente afetam o cotidiano da população, como segurança pública, acesso a direitos e qualidade de vida”, conclui Cervi.

Segundo o professor, houve uma mudança expressiva entre 2018 e 2022. Na eleição que levou Bolsonaro à Presidência, o apoio evangélico foi majoritário, mas recuou de forma significativa no pleito seguinte. Cervi explica que, entre os neopentecostais, opera a lógica da “punição” e da “premiação” dos governantes. Ao avaliar a gestão Bolsonaro, muitos optaram por “puni-lo” e “premiar” Lula. “Mudaram de lado por uma razão simples: consideraram que o governo foi ruim”, afirma.

Aposta. Em aceno ao eleitorado evangélico, Lula indicou Jorge Messias para ocupar uma vaga no Supremo – Imagem: Redes Sociais/AGU

A questão é que Lula também será julgado nas urnas. Segundo a pesquisa mais recente da Quaest, divulgada na terça-feira 16, quase dois terços dos eleitores evangélicos (64%) desaprovam o seu governo – no levantamento anterior, o índice era de 58%. O presidente dispõe de apenas dez meses para demonstrar a esse segmento que merece mais quatro anos de mandato, e isso não se resolve apenas com a indicação de um fiel para uma vaga no Supremo Tribunal Federal, ainda que o gesto seja bem-vindo por um grupo historicamente sub-representado na mais alta instância do Judiciário.

“É importante ressaltar que Jorge Messias não foi escolhido apenas por ser evangélico. Ele é advogado-geral da União, uma figura respeitada no campo do Direito e militante histórico do PT. A condição religiosa não é central neste caso, mas mostra que há pluralidade também à esquerda”, afirma a jornalista Magali Cunha, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser).

A recente pesquisa reforça algo que Nilza Valéria Zacarias, coordenadora da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, tenta esclarecer há tempos a lideranças do campo progressista: “Ninguém se define apenas pela identidade de evangélico. Os fiéis também têm gênero, raça, classe social… São profissionais da saúde, da educação, empregadas domésticas. Essas múltiplas dimensões precisam ser consideradas”.

Hoje, quase dois terços dos fiéis desaprovam o governo Lula, segundo a Quaest

Por esse mesmo motivo, Zacarias defende que Lula deve dirigir-se diretamente ao eleitorado evangélico, em vez de insistir em acordos com líderes de igrejas. Ela destaca como positivo o trabalho de aproximação realizado pela primeira-dama nos últimos meses. Janja da Silva participou de pelo menos sete encontros com fiéis em diferentes capitais, focados em regiões periféricas, onde ouviu as demandas desse público. “São mulheres que desenvolvem projetos de cozinhas solidárias em suas comunidades, oriundas do movimento de luta por moradia, mães atípicas, e apresentam demandas concretas que podem ser atendidas por meio de políticas públicas”, explica a ativista. Até agora, os encontros foram fechados. A ideia é que, a partir do próximo ano, sejam ampliados e abertos. “Muitas dessas mulheres não votaram em Lula, mas estão abertas ao diálogo.”

Cunha, do Iser, considera “muito importante” a disposição de Janja em escutar esse público. “As mulheres são o grupo mais expressivo das igrejas, são trabalhadoras, chefes de família e têm preocupações que precisam ser contempladas.” Para se aproximar dessa população, eladefende que a esquerda deve “apresentar propostas que não se limitem ao campo econômico, mas que demonstrem como as políticas públicas podem permitir viver bem, realizar desejos e sonhos”.

Quando o governo abre canais de diálogo com as mulheres evangélicas, quem sai ganhando é a democracia, acrescenta Zacarias. “Como mostra a pesquisa, os evangélicos são os mais vulneráveis, os mais afetados pelas políticas públicas. Estão dispostos a dar esse voto de confiança. Por isso, é fundamental que múltiplas vozes sejam ouvidas.” •

Publicado na edição n° 1393 de CartaCapital, em 24 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A questão é de classe’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo