CartaCapital
Facas e punhais
Por dinheiro das emendas e vingança pessoal, Motta e Alcolumbre abraçam a agenda bolsonarista
O governo acaba de facilitar e baratear a obtenção da carteira de motorista. Ao anunciar as medidas, o presidente Lula comentou: “Teoricamente, eu tenho um Congresso totalmente adverso”. A maioria dos deputados e senadores é uma mistura de reacionários bolsonaristas e integrantes do “Centrão”, descrição imprecisa daquela turma movida a fisiologismo e negócios. Quando essas duas bandas se unem, o País assiste a cenas dignas dos Corleone, a família mafiosa de O Poderoso Chefão. A tentativa de proteger congressista fora da lei e anistiar golpistas foi um desses momentos hollywoodianos, felizmente derrotada pelas ruas meses atrás. O anúncio da candidatura presidencial de Flávio Bolsonaro colocou na praça um spin-off desse mesmo filme no qual a chantagem deu o tom, inclusive no próprio campo da oposição.
A candidatura de Flávio busca emparedar o governador paulista, Tarcísio de Freitas, e todos aqueles que o defendem como o adversário de Lula nas urnas. E o motivo é fácil de entender. O pai do senador está condenado a 27 anos de cadeia e não quer morrer na prisão. Precisa de anistia ou redução de pena, qualquer uma das alternativas. Se algum presidenciável antilulista quiser os votos do eleitorado bolsonarista terá, desde logo, de começar a trabalhar para livrar a cara do capitão, não bastam promessas para o futuro incerto. Do contrário, o clã fará de tudo para manter sob controle esses eleitores, por meio de um candidato com o sangue do ex-presidente. Deu certo a chantagem.
O senador Flávio Bolsonaro usa a candidatura presidencial como moeda de troca da família – Imagem: Ton Molina/AFP
Em uma reunião três dias depois de Flávio ter se colocado no páreo, os presidentes do PL, Valdemar Costa Neto, do PP, o senador Ciro Nogueira, e do União Brasil, Antonio Rueda, combinaram: todos apoiariam a votação de uma lei de redução de pena para os golpistas. Não por coincidência, o filho 01 havia anunciado aos quatro ventos que a sua candidatura tinha um “preço”. “Todo mundo sabe que a direita quer o Tarcísio”, afirma Paulo Teixeira, ministro do Desenvolvimento Agrário e deputado eleito pelo PT. “O Flávio colocou a candidatura porque impede uma unidade nesse campo. E, ao impedir essa unidade, exige em contrapartida a anistia do pai. Se houvesse anistia, o candidato seria o Bolsonaro.”
O próximo passo na trama coube a Hugo Motta, o presidente da Câmara dos Deputados. Sem avisar o governo, apoiador de sua eleição para o cargo e contrário ao alívio para os golpistas, Motta marcou a votação da redução de pena, também conhecida como dosimetria. O paraibano, registre-se, é do mesmo partido do chantageado Freitas, o Republicanos, adora um convescote na Avenida Faria Lima, a casamata do “mercado”, e é parceiro de Nogueira. Sua chefe de gabinete, Sabbá Cordeiro, foi assessora do senador e presidente do PP por anos e exerceu a chefia de gabinete quando este comandou a Casa Civil no governo Bolsonaro.
Se aprovada no Senado, a dosimetria será um tapa na cara das instituições. Bolsonaro ficaria menos de três anos em regime fechado – Imagem: Rosinei Coutinho/STF e Sergio Lima/AFP
Após Motta anunciar a votação da redução de pena, ministros petistas conversaram e, com base em informações de bastidor do Congresso, convenceram-se de que se ensaia um acordo para Freitas ser o candidato e Flávio, o vice. Um acordo, prossegue Teixeira, costurado sobretudo por Nogueira e outro pepista, Arthur Lira, antecessor de Motta no comando da Câmara. Na reunião de líderes partidários na qual comunicou a votação, o presidente da Casa colocou na mesa um tema palpitante e de interesse de nove em cada dez congressistas: as emendas parlamentares, o dinheiro para obras inserido no orçamento por deputados e senadores. Foi o que se soube graças a uma conversa de deputados do PDT gravada por uma repórter de O Globo. Os pedetistas falavam do encontro de líderes e comentaram que o paraibano havia solicitado “ajuda” para conseguir do governo a liberação dos recursos. Outra chantagem. Patrocinar a causa bolsonarista poderia funcionar para pressionar o Palácio do Planalto.
Não foi a primeira vez que Motta agiu na surdina e pelas costas do governo Lula. Foi assim na derrubada do decreto presidencial que aumentava em junho o IOF, tributo sobre operações financeiras, na votação da urgência para anistiar os golpistas, em setembro, e na designação de um bolsonarista da gema (e secretário de Freitas) para desvirtuar uma lei elaborada pelo Ministério da Justiça contra o crime organizado. Ao saber que o deputado levaria ao plenário a redução de pena de golpistas, um cacique petista comentou: “Ele escolheu dialogar com um lado da sociedade, o bolsonarismo. Agora vai acontecer na Paraíba o que já caminhava para acontecer”. Motta tenta dar uma força à campanha ao Senado do pai, Nabor Wanderley, prefeito da cidade de Patos. Em um estado do Nordeste, a bênção de Lula faz diferença. O presidente vai, conforme o cacique petista, apoiar os dois rivais de Wanderley: o governador João Azevêdo, do PSB, e o atual senador Veneziano Vital do Rêgo, do MDB.
Abraçar a pauta bolsonarista é uma forma de Motta pressionar pela liberação das emendas
O Planalto deu o troco no presidente da Câmara em outro embate. Além da votação de redução de pena de golpista, Motta mandou ao plenário a cassação de Glauber Braga, do PSOL do Rio de Janeiro, acusado de quebra de decoro por ter chutado um militante do MBL que havia ofendido a sua mãe nos corredores do Congresso. Na véspera de o processo ir a voto, Braga ocupou a cadeira da presidência da Casa e foi retirado à força pela polícia legislativa por ordem do próprio Motta, conforme o chefe dos seguranças revelou a jornalistas. Repórteres foram agredidos do lado de fora do plenário, tinham sido proibidos de entrar. Tudo sem um registro sequer da TV Câmara, devidamente censurada. O episódio custou a Motta uma queixa-crime na Procuradoria-Geral da República por lesão corporal e autoria intelectual das agressões.
Braga havia feito em abril uma greve de fome contra a perda de mandato e à época recebera uma visita da ministra Gleisi Hoffmann, responsável pela articulação política do Planalto. Um dos secretários da equipe da ministra, André Ceciliano, atuou para o psolista escapar da cassação, conversou com vários deputados. E conseguiu. O acusado foi punido com seis meses de suspensão, o que mantém seu direito de disputar a próxima eleição. Será substituído nesse tempo por Heloísa Helena. A deputada bolsonarista Carla Zambelli, do PL paulista, preservou o mandato na mesma sessão, apesar de ter sido condenada a 15 anos de prisão em dois processos diferentes pelo Supremo Tribunal Federal. Para a Corte, a cassação da parlamentar, presa na Itália à espera de uma decisão sobre sua extradição, deveria ser automática. Confusão à vista entre Câmara e STF, algo que se repetirá no caso de Alexandre Ramagem, do PL do Rio, condenado a 16 anos de prisão na mesma ação penal de Bolsonaro e foragido nos Estados Unidos.
Os indígenas acabaram arrastados para o meio da contra-ofensiva do Parlamento. Amin não descarta a anistia ampla, geral e irrestrita – Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil e Zeca Ribeiro/Agência Câmara
Com a aprovação da dosimetria por 291 votos a 148, a pena de Bolsonaro pode cair de 27 para 20 anos. E o tempo efetivo na cadeia, em regime fechado, de 7 para 3 anos. Eis a obra do deputado Paulinho da Força, do Solidariedade, autor da versão final do projeto enviado ao Senado. O PT e o PSOL convocaram manifestações para o domingo 14 contra o alívio dado aos golpistas. Os psolistas dizem abertamente se tratar de protestos contra o “Congresso inimigo do povo”. Dias antes, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, do União Brasil do Amapá, havia mandado a polícia legislativa investigar a origem de mensagens postadas nas redes sociais contra o Congresso. Ele e Motta desconfiam ser obra do PT. Lula, comenta um deputado petista, tomou gosto por enfrentar o Congresso. Deu-se conta de que faz bem para o ibope.
Alcolumbre é outro da galeria de chantagistas desta reportagem, impelido por (é o que corre nos bastidores do Senado) sentimentos de vingança em relação a Lula e ao Supremo. O senador prometia votar rapidamente a redução de pena para os golpistas. Graças ao colega Otto Alencar, do PSD da Bahia, por enquanto o plano não deu certo. Alencar comanda a Comissão de Constituição e Justiça, passagem de quase todos os projetos antes de decisões plenárias. O baiano contestou Alcolumbre durante o anúncio da tramitação a jato e cobrou que a CCJ votasse antes do plenário. Na manhã seguinte, com a lei aprovada na Câmara, driblou o presidente do Senado e acertou-se com a burocracia para o envio do projeto à comissão. E designou um direitista, o catarinense Espiridião Amim, do PP, como relator. O parecer deve ser apresentado na terça-feira 17, naquela que deve ser a última semana legislativa no ano. Um governista pedirá para examiná-lo com calma, o que empurrará o desenlace para 2026. Alcolumbre irá contra-atacar?
Estão nas mãos do Supremo, sob constante ameaça, os mecanismos para por fim à farra do orçamento secreto. A Corte irá adiante? – Imagem: Gustavo Moreno/STF
O amapaense comentou no meio de uma sessão que há uma coleta de assinatura entre senadores para o projeto ser examinado em regime de urgência, o que lhe permitiria tirá-lo da CCJ e levá-lo diretamente ao plenário. De quebra, decidiu que, na última semana de trabalho, os senadores poderão votar à distância, sem precisar estar em Brasília. Situação preocupante, segundo um lulista da Casa, para quem Alcolumbre opera no modo “vingança”, atiçada pela derrota na tentativa de emplacar no Supremo o aliado Rodrigo Pacheco, senador pelo PSD de Minas Gerais. Lula preferiu indicar Jorge Messias, o advogado-geral da União. “O Davi jogou muito peso pelo Pacheco”, salienta o lulista, que aponta outra “vingança”, a votação a toque de caixa de uma mudança na Constituição que dá vida à tese ruralista de “marco temporal” na demarcação de Terras Indígenas.
A votação ocorreu na véspera de o STF iniciar o julgamento de ações contrárias a uma lei de 2023 que consagra o marco temporal. Aprovada pelo Congresso, foi barrada por Lula e ressuscitada pelos parlamentares com a anulação do veto presidencial. Havia nascido em circunstância idêntica à de agora, bem na hora de o Supremo julgar a tese de “marco temporal”, que limita as demarcações de Terras Indígenas. O atual relator no tribunal é Gilmar Mendes. Não que este seja um amante das causas indígenas – é dono de terras em um estado ruralista, o Mato Grosso –, mas há dois anos tinha votado a favor delas. E foi quem deu recentemente uma liminar para dificultar o impeachment de togados do STF, um tranco indireto no Senado.
Mendes havia fixado duas regras ao examinar ações contrárias à lei de 1950 que trata da cassação de autoridades. Somente a Procuradoria-Geral da República teria poderes para pedir a cabeça de um juiz e a aprovação no Senado precisaria contar com dois terços dos votos, quórum semelhante àquele de processos contra um presidente. Alcolumbre ficou uma fera com a liminar, justificada verbalmente por Mendes como uma espécie de antídoto contra a estratégia eleitoral bolsonarista de tomar conta do Senado a partir de 2027 e fustigar a Corte suprema. Os dois principais alvos são Alexandre de Moraes, algoz dos golpistas, e Flávio Dino, empenhado em colocar um freio na farra das emendas.
Glauber Braga não contou com a paciência demonstrada por Motta no episódio dos bolsonaristas que ocuparam a mesa da Câmara por dois dias – Imagem: Saulo Cruz/Agência Senado e Redes Sociais
Dino está em uma cruzada moralizadora. Desde 2024 tem tomado decisões que jogam luz e facilitam o rastreio do dinheiro empenhado por parlamentares. Sempre que se depara com pistas de falcatruas, avisa a Polícia Federal. Aconteceu de novo nos últimos dias, diante de outra auditoria da Controladoria-Geral da União. No despacho, anotou ter havido “grave afronta às decisões do STF em tema tão relevante quanto o uso de dezenas de bilhões de reais do Orçamento”. Na condição de presidente de uma das turmas da Corte, agendou o julgamento da primeira ação penal que pode mandar à cadeia congressistas acusados de corrupção com emendas. Será em março. Na mira, um trio do PL: Josimar do Maranhãozinho e Pastor Gil, ambos do Maranhão, e Bosco Costa, de Sergipe.
O que os congressistas mais temem é que Dino leve a Corte a julgar três ações capazes de acabar com a obrigação de o governo liberar os recursos das emendas e o uso do PIX nesses pagamentos. “O Congresso não aceitará retrocessos”, declarou Motta em um debate com o juiz no início do mês. “‘Ah, (o Congresso) não pode ficar com pires na mão’. É verdade, não pode. Mas também não pode roubar o pires. Não pode roubar o prato, o copo, a xícara, a colher”, rebateu Dino. Em setembro, o togado requereu à Advocacia-Geral da União e à Procuradoria que se manifestassem pela última vez nos processos sobre a impositividade e as emendas PIX. Em tese, está autorizado a pedir ao presidente do Supremo, Edson Fachin, que marque a data da decisão plenária. Um julgamento “apocalíptico”, anotou Dino em junho, em Portugal, em razão do previsível terremoto nas relações entre governo e Congresso. Adendo: na quarta-feira 10, após o Senado acenar com uma mudança nas regras de impeachment dos magistrados, Mendes suspendeu a própria decisão de limitar à PGR o poder de solicitar as cassações.
Alcolumbre manobra para votar a dosimetria em regime de urgência
Edinho Silva, presidente do PT e ex-ministro, vê um “desarranjo institucional” provocado pelo gigantismo das emendas. Um “desarranjo que descaracteriza o presidencialismo” e fica patente, segundo ele, quando há um mandatário forte como Lula. “Não concordo com as emendas impositivas. O fato de o Congresso Nacional sequestrar 50% do orçamento da União é grave erro histórico”, declarou em um evento em Brasília. Lula nunca falou sobre resolver o problema no Supremo, mas parece torcer por esse desfecho. Edinho Silva é a favor.
O ex-ministro não leva a sério a candidatura de Flávio Bolsonaro, acredita se tratar de um bode colocado na sala para abrir espaço à negociação da libertação do pai. E, mesmo se fosse para valer, o PT demonstra não se preocupar com os nomes nas urnas contra Lula. “O adversário interessa muito pouco, o que interessa é a situação em que o governo vai chegar”, afirmou o petista em um café da manhã com jornalistas em Brasília. “A candidatura do Flávio tem uma característica: ele não vai ser eleito, mas atrapalha demais os outros concorrentes do mesmo campo, que vão ter de lutar para ir ao segundo turno”, afirma o cientista político Leonardo Avritzer, professor aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais. “O Flávio é o menos carismático e o mais vulnerável dos filhos do Bolsonaro. Tem telhado de vidro, por causa da ‘rachadinha’ e da mansão de Brasília.”
Zambelli, condenada à prisão, não foi cassada. A Câmara continua a bancar um traidor da pátria – Imagem: Gage Skidmore e Pablo Valadares/Agência Brasil
“Rachadinha” é nome folclórico para “peculato”, a captura de dinheiro público por quem deveria zelar por ele. O crime foi imputado ao senador pelo Ministério Público do Rio em razão da descoberta de que ele, quando deputado estadual, embolsava parte do salário de funcionários do gabinete. Nesse enredo, sepultado pelo Judiciário sem um julgamento de mérito, desponta o capitão da PM Adriano Magalhães da Nóbrega, miliciano, matador de aluguel e bicheiro morto em um cerco policial na Bahia em 2020. No ano seguinte, Flávio comprou uma casa de 6 milhões de reais na capital brasileira. Metade do dinheiro veio de um empréstimo mal explicado do BRB, o banco estatal de Brasília metido no escândalo do Master. Um dos maiores doadores de Bolsonaro na campanha de 2022 foi o cunhado do dono do Master. Idem com Tarcísio de Freitas.
E o governador paulista, concorrerá a presidente? “Ele vai raciocinar até o último momento se vai se licenciar do governo de São Paulo e arriscar o que hoje é a fortaleza deles”, aposta Teixeira. O Diretório Nacional do PT reuniu-se depois de Flávio declarar-se presidenciável e analisou o quadro político. O documento divulgado após o encontro não cita o senador, mas menciona o governador. Os petistas torcem para Freitas concorrer ao Planalto. Acham mais fácil carimbá-lo de representante do “mercado”, dos bancos, dos ricos. Registre-se: o dólar subiu e a Bolsa de Valores caiu no dia do anúncio da candidatura do filho 01 justamente por causa das preferências da Faria Lima. O PT imagina ainda que sem o atual governador na disputa em São Paulo haveria chance real de tomar a “fortaleza” inimiga, ou com a postulação de Fernando Haddad, ministro da Fazenda, ou a do vice-presidente Geraldo Alckmin.
A ver como evoluirão as negociações pelas bandas dos chantagistas. •
Publicado na edição n° 1392 de CartaCapital, em 17 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Facas e punhais’
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