Assine
A cozinha comunitária ajudou a sustentar famílias em crise e virou símbolo da reconstrução cotidiana no Sol Nascente – Imagem: Lyon Santos/MDS

StudioCarta

Depois da fome

As histórias de duas mulheres revelam o que mudou no Brasil que saiu do Mapa da Fome e o que ainda permanece na escassez

Apoio do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social

A fome costuma chegar e se instalar em silêncio. Primeiro, ela some com a variedade nos pratos, depois a carne, depois os temperos, até que o armário passa a ensinar, sozinho, a diferença entre ter e não ter. E é nesse intervalo, quase imperceptível entre o que existia e o que deixa de existir, que muitas famílias brasileiras aprenderam a identificar a proximidade do desamparo. Por anos, essa experiência se tornou rotina para milhões de pessoas no País, até que as estatísticas voltaram a registrar o que se via nas mesas: a fome novamente sendo presença estrutural, moldando escolhas e restringindo futuros.

A história de milhões de famílias seguiu esse movimento, em que a privação deixa de ser um episódio e se torna condição. Entre elas estava Luana Santana Araújo, 28 anos, que cresceu no interior do Maranhão. Quando chegou ao Distrito Federal, em 2013, trazia mais do que uma mudança de estado, mas a lembrança de noites em que ela e os irmãos esperavam que o pai encontrasse algum jeito de garantir comida. Anos depois, já mãe de três filhos, a vida parecia repetir o enredo quando o marido perdeu o emprego e o aluguel tornou-se impossível de pagar.

“Teve dia em que eu chorava porque só tinha arroz e feijão. E quando nem isso tinha, a gente pedia”, lembra. Ela fala sem elevar a voz, como quem sabe que algumas dores não precisam ser dramatizadas para ser entendidas. A fome nunca é abstrata – ela mora em decisões concretas, como medir o que sobrou da despensa, dividir o que não basta e escolher a quem servir primeiro.

A cozinha comunitária ajudou a sustentar famílias em crise e virou símbolo da reconstrução cotidiana no Sol Nascente – Imagem: Lyon Santos/MDS

As histórias como a de Luana ajudam a compreender por que o Brasil voltou ao Mapa da Fome em 2022 e, sobretudo, como conseguiu sair dele novamente em 2024, segundo o relatório SOFI da FAO, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. O indicador que marca essa saída não fala de um país inteiro de uma vez; fala de milhões de histórias domésticas que mudam um pouco a cada mês. A média trienal da Prevalência de ­Subalimentação caiu abaixo de 2,5%, mesmo com o impacto do ano crítico de 2022.

A reversão desse cenário começou com o fortalecimento do Plano Brasil Sem Fome, estruturado em três eixos que se alimentam mutuamente: renda e cidadania; produção e acesso à alimentação saudável; e mobilização federativa e social. Em 2023, a aplicação da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia) na Pnad Contínua registrou um salto decisivo: 24 milhões de pessoas deixaram a situação de fome em relação aos dados da Rede Penssan para 2022.

O que essa mudança significa no cotidiano é mais simples do que os números sugerem. Para Luana, significa abrir a geladeira sem medo. “A sensação é de alívio. Hoje eu tenho o que dar para eles.” A frase descreve a segurança doméstica que se transformou com o Novo Bolsa Família – núcleo central das políticas de renda. Em novembro de 2025, o programa alcançou 18,6 milhões de famílias, com repasses que superaram 12,6 bilhões de reais em um mês. Foram pagos benefícios para 14,3 milhões de crianças e adolescentes, quase 1 milhão de gestantes e nutrizes e 8,2 milhões de crianças na primeira infância.

Mas a renda, sozinha, não sustenta a travessia. A queda da fome apoia-se na combinação de ações que estruturam o Brasil Sem Fome: o Programa de Aquisição de Alimentos, que comprou 110 milhões de quilos de agricultores familiares desde 2023; o Programa Cisternas, que ultrapassou 1 milhão de unidades para consumo; o BPC, que garante renda a 6,4 milhões de pessoas; a alimentação escolar, que chega a 37,5 milhões de estudantes; e a distribuição de cestas a povos e comunidades tradicionais, que somou 1,6 milhão de entregas.

Essas políticas não surgem de forma isolada nos mapas de gestão. Elas atravessam territórios e se encontram em histórias como a de Valdineia, liderança do Sol Nascente, cuja cozinha comunitária virou ponto de acolhimento e de reconstrução. Foi ali que Luana encontrou a estabilidade que lhe faltava quando precisou deixar o aluguel e viver de favor. O Sol Nascente – tantas vezes lembrado pelas vulnerabilidades – tornou-se símbolo do terceiro eixo do Plano: a mobilização nacional, capaz de articular governos e sociedade civil na reconstrução da segurança alimentar.

Histórias de fome e reconstrução revelam como a mudança nos dados virou mudança dentro das casas

A adesão de 2.007 municípios ao ­SISAN mostra como essa costura federativa sustenta o avanço contínuo. Isso importa especialmente para os 8,7 milhões de brasileiros que ainda vivem com insegurança alimentar grave, prioridade explícita do Plano para os próximos três anos.

A experiência brasileira também ganhou projeção internacional. Em 2024, durante a presidência brasileira do G20, foi lançada a Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza, hoje reconhecida pela ONU como modelo de coordenação em larga escala. Em apenas um ano, a Aliança passou de 148 membros para mais de 200, incluindo mais de cem países e instituições financeiras internacionais. Nove planos nacionais já foram validados, e quatro países iniciaram programas de implementação com bancos multilaterais e agências das Nações Unidas.

Na primeira Reunião de Líderes da instância, em Doha, o secretário-geral, ­António Guterres, destacou que enfrentar a fome exige “integrar políticas, romper silos e conectar agricultura, saúde, clima, comércio e finanças”. Coube ao ministro Wellington Dias, copresidente da Aliança, sintetizar a mudança brasileira: “Retiramos 26,5 milhões de pessoas da fome e 7,6 milhões da pobreza graças à decisão de incluir os pobres no orçamento”.

É essa decisão – política, orçamentária e moral – que sustenta o avanço registrado pela FAO e pelo IBGE. A saída do Brasil do Mapa da Fome não encerra a luta, mas redefine o seu terreno. A fome deixou de ser tendência e voltou a ser combate.

A cozinha de Luana, hoje cheia de panelas, temperos e frutas escolhidas pelos filhos, materializa essa transformação. “Eu tenho orgulho da minha caminhada”, diz. A frase serve de bússola para o País. O que a estatística registra, a vida confirma: quando a fome sai da casa de alguém, o Brasil fica um pouco mais livre dela também. •

 

APOIO:

Publicado na edição n° 1392 de CartaCapital, em 17 de dezembro de 2025.

 

Studio Carta

Studio Carta

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo