CartaCapital
A fantástica luta de classes
Quem é China Miéville, o autor de ficção científica conhecido pelo olhar marxista e pela imaginação fértil?
Se há um elemento em comum aos romances, contos e ensaios do britânico China Miéville é a recusa do autor em se repetir. Embora temas como disputa de poder, tensão entre classes e embate entre antigo e moderno permeiem sua obra, um livro difere do outro.
Mesmo A Cicatriz, segundo volume da trilogia Bas-Lag, não é exatamente uma sequência do primeiro livro, Estação Perdida. Lançado no Reino Unido em 2002, o romance ganhou recentemente sua primeira tradução no Brasil.
Ambos os romances se passam no mesmo universo, se complementam, mas não se pode dizer que sejam contínuos. O primeiro estabeleceu a cidade-estado fictícia de Nova Crobuzon, uma metrópole industrial, sombria e decadente, marcada por forte desigualdade social, corrupção política, alta tecnologia misturada a magia biológica, e por uma convivência tensa entre diversas espécies de humanoides. A Cicatriz retoma o cenário, mas coloca nele novos personagens e situações.
“A ideia sempre foi escrever três livros que pudessem ser lidos de forma independente”, diz Miéville em entrevista a Carta Capital, via teleconferência, de Londres, onde vive. Miéville é bem-humorado e gosta de dialogar.
Com pouco mais de 50 anos, e uma carreira de escritor que começou no ano 2000, ele é um dos principais nomes do chamados New Weird – subgênero da literatura fantástica que, grosso modo, recusa a gramática da fantasia tradicional e segue a tradição do século XIX conhecida como weird, de “estranho”.
A CICATRIZ. China Miéville. Tradução: José Baltazar Pereira Júnior. Boitempo (528 págs., 119 reais)
“Amo a literatura fantástica”, diz ele, que tem como referências H.P. Lovecraft, Ursula K. Le Guin e Gene Wolfe. “Ela me permite abordar elementos como questões de poder, economia, geopolítica e opressão de uma forma que o realismo puro não permite”.
Para Miéville, a história acontece em ondas. Temas e fatos, como guerras, imigração e genocídios estão sempre no radar, sempre acontecendo, mas, de tempos em tempos, sobem à superfície.
“A cada vez que ressurgem, esses eventos históricos vêm de forma pior que os anteriores”, reflete. “Quando escrevi esse livro, eles estavam em evidência. E agora estão novamente. Acho que vivemos no pior momento em que poderíamos viver.” De fato, apesar dos mais de 20 anos que separam o lançamento original dessa tradução, o romance continua bastante atual.
A protagonista é a jovem e misteriosa Bellis Coldwine, tradutora forçada ao exílio. Em Armada, para onde ela se muda, está uma enigmática elite social que trama planos grandiosos envolvendo criaturas abissais e forças sobrenaturais. Os personagens estão presos nessa cidade flutuante construída a partir de navios piratas acoplados uns aos outros.
A visão de mundo de Miéville é marcada por um olhar marxista, que investiga a relação entre classes. Um exemplo disso se dá logo no começo do livro, quando Bellis observa um grupo de prisioneiros de Armada. Esses novos cativos serão distribuídos entre tarefas como remo, manutenção e serviços pesados, enquanto os habitantes antigos ficam com funções mais leves e com melhor remuneração.
Miéville sempre foi politicamente identificado com a esquerda. Ele é doutor em Direito Internacional pela London School of Economics e chegou a militar no Partido Trabalhista britânico. Não por acaso, é um escritor particularmente atraente para leitores de esquerda. Um de seus livros de não ficção é Outubro: História da Revolução Russa (2017).
Embora não negue fazer literatura engajada, ele rejeita o viés panfletário: “Acho impossível não abordar política e formas políticas na arte, mas a ideia é não cair na propaganda que transforma o discurso em algo inócuo”. •
VITRINE
Por Ana Paula Sousa

A Vaca Mais Rica do Mundo (Reco-Reco, 32 págs., 49,40 reais) é uma fábula sobre o valor do dinheiro. Por meio do encontro entre um porco ambicioso e uma vaca tranquila, Barroux mostra que a riqueza não está em cofres, bancos e cartões. Ela pode estar sob a sombra de uma árvore.

Sob o preciso título A Fina Lâmina da Palavra (264 págs., 92 reais), a Cobogó reuniu um conjunto de ensaios de Leda Maria Martins, dona de uma escrita a um só tempo límpida e complexa e de um pensamento absolutamente original sobre literatura, teatro e artes visuais.

No meio cultural, a COP30 serviu de mote para a celebração de muitas trajetórias iniciadas no Norte do País. Foi esse o caso de Emmanuel Nassar, artista visual nascido em Belém cuja obra ganhou novo registro em um livro-catálogo editado pelo Instituto TeArt e a Cosac (400 págs., 310 reais).
Publicado na edição n° 1392 de CartaCapital, em 17 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A fantástica luta de classes’
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