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Uma mãe contra o regime

A batalha de Zuzu Angel para denunciar a morte do filho é narrada de forma intensa em Quem É Essa Mulher?

Uma mãe contra o regime
Uma mãe contra o regime
Busca. A costureira preferida da elite carioca viu sua vida mudar radicalmente após o desaparecimento de Stuart Angel, militante do MR-8, em maio de 1971 – Imagem: Acervo Instituto Zuzu Angel
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Um dos episódios mais emblemáticos da ditadura brasileira foi o sequestro, a tortura, a morte e o desaparecimento do corpo de Stuart Angel Jones, perseguido por sua militância no Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Sua mãe, Zuzu Angel (1921–1976), nome conhecido no mundo da moda, se tornaria, a partir daí, uma figura notória no combate ao regime.

Em 1976, Zuzu morreu em um suposto acidente automobilístico. Em 1998, a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos reconheceu o regime como responsável por sua morte. O carro da estilista teria sido jogado para fora da pista por outro veículo, pilotado por agentes da ditadura. Além de Stuart, ­Zuzu teve, com o estadunidense Norman Angel Jones, duas filhas: ­Hildegard e Ana Cristina.

Natural de Curvelo (MG), Zuzu ­Angel tem sua trajetória recuperada no livro Quem É Essa Mulher? – Uma Biografia de Zuzu Angel, baseado em pesquisa com fontes primárias e farta documentação, assinado pela jornalista Virginia Siqueira Starling, que dedicou quatro anos ao trabalho.

“Eu conhecia Zuzu de minhas leituras sobre moda”, diz Virginia. “Em relação ao seu enfrentamento da ditadura, sabia o básico: o desfile-protesto, a entrega do dossiê a Henry Kissinger, o acidente de carro forjado para matá-la.” Do básico, a autora partiu para um mergulho que resulta numa biografia primorosa.

Zuzu Angel sempre teve inclinação para a costura. Esse era, porém, um dom que ela desenvolvia por diletantismo, sem imaginar que iria se profissionalizar. Costurar, naquela época, era uma habilidade comum entre as jovens da classe média: aprendia-se o básico, como pregar botões, fazer uma bainha e cerzir. Em casos de necessidade financeira, a costura também acabava por servir como fonte de renda.

No caso de Zuzu, a criatividade levou à profissionalização. Suas roupas autênticas foram chamando atenção de uma clientela cada vez maior. Em 1966, realizou, no II Salão da Moda, inaugurado pelo governador Negrão de Lima, no Pavilhão de São Cristóvão, no Rio, seu primeiro desfile. Logo seu nome passou a ser citado nas seções de moda dos jornais.

Da sua clientela faziam parte mulheres endinheiradas do Rio de Janeiro e esposas de figuras importantes da política nacional – dentre elas, militares. E não demorou para que começasse a ganhar também projeção internacional. A primeira cliente no exterior foi a atriz Yvonne De ­Carlo, que ganhou notoriedade a partir do filme Os Dez Mandamentos (1956), no qual interpretou Séfora, esposa de Moisés.

Mas a rotina de vida de costureira das elites mudou de forma repentina e radical com o desaparecimento de seu filho. Stuart Angel Jones – como relata a biógrafa em sua escrita atenta aos detalhes – abandonou uma de suas paixões, o time de remo do Flamengo, por volta de 1966, logo após o início do curso na Faculdade de Economia, para ­atuar como militante de esquerda no MR–8.

Quem É Essa mulher? – Uma Biografia de Zuzu Angel. Virginia Siqueira Starling. Todavia (560 págs., 159,90 reais)

Após ingressar no movimento, ele deixou de aparecer nas festas de sábado à noite em que imitava os passos de twist do cantor norte-americano Chubby ­Checker, ícone das pistas de dança dos anos 1960. Preocupado em manter a mãe e as irmãs o mais longe possível da vida insegura que levava, Stuart afastou-se da família.

O tempo mostraria que seu temor não era infundado. Perseguido pelo regime, Stuart foi sequestrado, torturado e morto no Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA), na 3ª Zona Aérea, no Galeão, no Rio. Torturado, morreu na madrugada de 15 de maio de 1971. Seu corpo desapareceu.

A partir de então, Zuzu Angel empreendeu uma luta corajosa e constante para obter informações a respeito do paradeiro do filho. E Quem É Essa Mulher? vai fundo no retrato dessa luta, construindo o mais aprofundado perfil dessa mulher que usou a própria fama para fazer as denúncias contra o regime chegarem aos veículos de imprensa no exterior e aos meios culturais brasileiros.

Quando apresentava suas confecções – que passaram a exibir um ­design “enganosamente inocente”, nas palavras da biógrafa – aproveitava o momento para criticar a ditadura brasileira. Quando Henry Kissinger (1923–2023), então secretário de Estado e Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, esteve no Rio de Janeiro, hospedado no Hotel Sheraton, Zuzu burlou o esquema de segurança para entregar-lhe documentos sobre o desaparecimento do filho.

“Ela foi até o fim, em todos os sentidos. E sua determinação me impressionou”, afirma a autora

“Ela recebeu ameaças de morte e, cerca de um ano antes de ser assassinada, entregou um bilhete a Chico Buarque, dizendo que havia recebido um documento com pormenores sobre a tortura e o assassinato do filho pelo governo brasileiro”, conta Virginia. Esse documento, segundo Zuzu, estava fora do País, nas mãos de familiares norte-americanos.

No bilhete, a costureira dizia ainda que, se algo viesse a acontecer com ela ou se aparecesse morta “por acidente, assalto ou qualquer outro meio”, teria sido obra dos mesmos assassinos do seu “amado filho.”

Vem da canção Angélica, de Chico ­Buarque, o título do livro. Quem é essa mulher/ Que canta sempre esse lamento?/ Só queria lembrar o tormento/ Que fez o meu filho suspirar, escreveu o compositor.

“À medida que lia e analisava os documentos preparados pelos órgãos da inteligência militar, ia percebendo que a repressão estava mesmo de olho em ­Zuzu e temia seus diversos atos de resistência”, conta Virginia. “Ela foi até o fim, em todos os sentidos, e sua determinação me impressionou profundamente.” •

Publicado na edição n° 1392 de CartaCapital, em 17 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Uma mãe contra o regime’

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